Evento debateu questões cruciais à afirmação e consolidação do regime democrático, dos direitos humanos e do Estado de Direito no Brasil.
Durante cinco dias, Advogados Públicos Federais, autoridades, juristas e especialistas debateram diversos temas relevantes sobre o funcionamento das instituições jurídicas e o papel que elas têm com a defesa e suporte de políticas públicas e das estruturas da democracia brasileira.
O seminário “As instituições jurídicas e a defesa da democracia”, um encontro inédito das maiores associações jurídicas do país, foi promovido de 9 a 13 de agosto, pela Associação Nacional dos Advogados Públicos Federais (ANAFE), em parceria com a Associação dos Juízes Federais do Brasil (AJUFE); a Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR); a Associação Nacional dos Procuradores dos Estados e do DF (ANAPE); a Associação Nacional dos Procuradores Municipais (ANPM); a Associação Nacional das Defensoras e Defensores Públicos (ANADEP); a Associação Nacional dos Defensores Públicos Federais (ANADEF); e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).
O seminário já alcançou mais de 3 (três) mil visualizações nas transmissões pelo canal do Youtube da TV ANAFE. A organização do evento informa que oferecerá certificado de horas para todos os participantes que preencheram o formulário até sexta-feira (13). O conteúdo debatido pode ser acessado, na íntegra em www.youtube.com/tvanafe.
O CONTROLE DE FAKE NEWS NAS ELEIÇÕES: LIBERDADE DE EXPRESSÃO EM CONFLITO COM A DEMOCRACIA?
A participação da Ministra do Supremo Tribunal Federal (STF), Cármen Lúcia, marcou a programação do último dia do seminário. Durante debate na sexta-feira (13), sobre o controle de Fake News nas eleições, a magistrada fez duras críticas à tirania que, segundo ela, promove regras de acordo com humores e conveniência, e defendeu a liberdade de expressão para a manutenção do princípio democrático.
“Este seminário dá exatamente a tônica contemporânea que é a de todos nós cada vez mais refletirmos como aperfeiçoar as instituições jurídicas para garantir a permanência da democracia, porque ela tem um paradoxo na sua própria essência, que a distingue e a privilegia em termos de cidadania”, explica. “A tirania é um pântano. A democracia é um lago disposto a todos que querem usá-lo. As democracias permitem, até mesmo, aqueles que querem questionar modelos democráticos.”
Durante seu discurso, a ministra reforçou que não há democracia ou república sem liberdade de expressão. “Não vejo possível a democracia sem liberdade de expressão e liberdade de imprensa. É ela que faz com que as coisas venham a público e formem, informem e conformem as informações que são possíveis para que os cidadãos possam livremente fazer suas escolhas e formar o caldo predominante do resultado do consentimento”, garantiu.
A magistrada defendeu um processo eleitoral rígido, idôneo e cujo resultado é coerente com aquele consentimento majoritário, e com a garantia das minorias que também precisam ter suas liberdades de expressão mantidas. “A liberdade de expressão também pode determinar práticas ilícitas, como as Fake News. O papel da justiça eleitoral é não permitir que práticas viciosas favoreçam a propagação dessa prática e contaminem o processo democrático. As Fake News são tentativas de impedir a escolha do livre cidadão”, afirma.
Ao final de seu discurso, a ministra garantiu que a obrigação do Judiciário vem sendo devidamente cumprida e reforçou a necessidade de que todos os cidadãos se comprometam com a democracia. “Ela é direito e produto de primeira necessidade”, finalizou.
AUTONOMIA DO BANCO CENTRAL: IMPORTÂNCIA E RISCOS
O primeiro painel da tarde “Autonomia do Banco Central: Importância e Riscos”, foi apresentado pelo Procurador do Banco Central Rafael Bezerra Ximenes de Vasconcelos. De acordo com ele, é muito comum pensar em temas regulatórios como temas setoriais, mas por vezes, temas regulatórios alcançam uma transcendência muito maior em termos de relevância para sociedade e em termos de relevância do conteúdo jurídico e no caso da moeda então, nada poderia ser mais verdadeiro, ainda que, lamentavelmente nem sempre tão claro.
“Estamos lidando com o papel de instituições jurídicas na defesa da democracia e aqui já se insinua uma aparente dicotomia, que dicotomia não é, pois trata-se sobretudo de uma complementariedade entre a dimensão do Direito e a dimensão da Democracia, com o diálogo entre ambas. De fato, as sociedades modernas, se equilibram sobre as amarras do Direito e a expressão de uma vontade conjuntural que costumamos de forma até pejorativa designar como governo de turno, mas que não é senão, a expressão por ter uma sociedade democrática”, afirmou.
Rafael realizou um histórico sobre o projeto de lei sancionado que trata da autonomia do Banco Central do Brasil. Para ele, a Lei Complementar 179 [sancionada em fevereiro] é tida hoje como responsável por trazer tal autonomia, mas ela na verdade teria restaurado um item dessa autonomia que era a investidura com prazo fixo, que já havia sido previsto na legislação e havia sido ensaiada na Constituição e retirada na comissão de sistematização.
Sobre a moeda, conclamou as pessoas a perceberem que esse é um tema discutido há milénios enfatizando que moeda é infraestrutura e não só para problema de eficiência econômica. “É infraestrutura para aquilatar a justiça”, finalizou recordando uma placa do Banco Central que dizia: “sem moeda sã, não há moral na sociedade.”
COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA ELEITORAL PARA CRIMES CONEXOS AOS ELEITORAIS: IMPASSES E DESAFIOS
A Procuradora Regional da República Silvana Batini César Góes iniciou sua fala agradecendo o convite da ANAFE, num momento tão emblemático e parabenizou os temas abordados no evento. “Tenho absoluta certeza que a institucionalidade é o único caminho que nos permite defender o Estado Democrático de Direito. Nesse aspecto que encontramos resistência e resiliência também.”
Ela explicou que atua em casos concretos que refletem também uma preocupação sobre a competência criminal da Justiça Eleitoral. “Ao nos aproximarmos do evento esse papel da Justiça Eleitoral adquiriu uma centralidade no debate sobre as questões democráticas no Brasil, pois a Justiça Eleitoral ficou no foco de uma grande discussão recente sobre a confiabilidade das urnas eletrônicas, do papel da Justiça Eleitoral na gestão da normalidade, da legitimidade do processo eleitoral brasileiro.”
Ao destacar o papel central que a Justiça Eleitoral desempenha no Estado Democrático de Direito, abordando o tema da competência criminal também, Batini afirmou que o Sistema de Justiça Eleitoral adquire uma centralidade no debate, pois vem desenvolvendo muito bem um papel de natureza administrativa e jurisdicional típica na solução dos conflitos.
Em relação à migração de processos de crimes conexos aos eleitorais para a Justiça Eleitoral, isso vem ocorrendo, segundo Silvana, na medida da convergência entre criminalidade comum e eleitoral, o que pode trazer contornos problemáticos para toda a sociedade e o direito.
“Com bastante tranquilidade a Justiça vem garantindo a sucessão desses processos eleitorais do Estado Democrático de Direito e, nesse momento de grande polarização que estamos vivendo, esse papel da Justiça Eleitoral acaba sendo questionado pela via das urnas eletrônicas. A Justiça Eleitoral passa a ter vários desafios, por isso, precisa reafirmar sua competência, expertise, experiência para tranquilizar a comunidade brasileira no sentido de que as nossas eleições são legitimas e confiáveis”, disse.
LAWFARE E CONDIÇÕES DE ELEGIBILIDADE
O Ex-Ministro da Justiça Eugênio José Guilherme de Aragão explicou que o Lawfare é uma forma de guerra assimétrica, de conflito assimétrico. “É uma forma de você induzir na sociedade um senso comum de que um ator ou uma atora merece um repudio da sociedade a despeito que uma outra interpretação também seria possível e talvez uma decisão in bonam partem sugeriria um apego maior ao espírito da lei do que aquela decisão in malam partem. “Quando estamos na seara do Direito Penal ou do Direito Eleitoral quando cuida das inelegibilidades essa questão é fundamental. É importante se ter em vista sempre o princípio da presunção da inocência que nos sugere a necessidade a de uma interpretação in bonam partem sempre.”
Na interpretação do jurista, é importante pontuar que o lawfare não pode ser resumido à uma mera “luta de classes”. “Por mais que eu acredite que a análise marxista tenha grande valor na análise econômica e social, o argumento jurídico é mais refinado porque ele é mais traiçoeiro. É perfeitamente possível ao cidadão que não entende do direito entender que a decisão feita está correta. Ele não tem a noção de que poder-se-ia ter decidido de outra forma”.
AS INSTITUIÇÕES JURÍDICAS EM TEMPOS DE CONTRARREFORMAS: RISCOS PARA O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
A palestra do presidente da ANAFE, Lademir Rocha, marcou o encerramento da programação do seminário “As instituições jurídicas e a defesa da democracia”. Em sua participação, ressaltou a preocupação com o crescente processo de contrarreformas em curso no país, que comprometem a constituição. Ele citou a Reforma Administrativa como uma peça a mais de uma engrenagem que vem desconstruindo a capacidade do Estado brasileiro de cumprir o projeto constitucional.
“Reformar o serviço público no Brasil é uma ideia constante. A questão é que o sentido semântico da ideia de Reforma envolve a universalização do acesso aos serviços públicos e não o caminho inverso, que é uma das consequências da proposta 32/2020”, afirma Lademir. Portanto, segundo ele, na medida em que contrarreformamos o serviço público, apontamos para o sentido inverso ao projeto constitucional. “Deveríamos estar aprofundando o caráter universal dos serviços públicos, sua equidade e transparência e não o processo de entrega e privatização desses serviços”, ressaltou.
Para Rocha, o Brasil assistirá um processo de rebaixamento da estabilidade através de processos que rebaixam a proteção atual, como a ausência de critérios de definição das carreiras típicas de Estado, sujeitando os servidores a mudanças de regime ditadas por flutuações na conjuntura política e pela conveniência de maiorias parlamentares ocasionais; o ingresso mediante “vínculo de experiência”, um experimento que desconsidera o caráter impessoal e republicano dos processos de seleção no serviço público; a possibilidade do ingresso de pessoas estranhas ao quadro dos servidores públicos para o exercício de atribuições técnicas, estratégicas e de gestão, por meio de cargos de liderança e assessoramento; e a fragilização da estabilidade dos atuais servidores, por meio de procedimentos de dispensa mais flexíveis e sujeitos ao subjetivismo e ao arbítrio. “Chamo a atenção para o risco na aprovação de regras que favoreçam a disseminação de práticas clientelistas e a captura das estruturas e recursos públicos por interesses privados”, apontou.
Em seu discurso, o presidente da associação reforçou a importância da manutenção das garantias do interesse público. “Fragilizar garantias significa caminhar na direção de uma democracia iliberal, não atenta aos compromissos a longo prazo do processo constitucional, onde há um sério risco de que a democracia degenere.”
O processo de contrarreformas motivou, então, o seminário sobre a importância das instituições jurídicas como mecanismos que atenuam ou impedem a extinção do sistema democrático, justificou Lademir. “Uma democracia constitucionalmente responsável é aquela que atenta à necessidade de proteção institucional dos agentes públicos responsáveis por assegurar que a própria democracia não contenha o germe que eliminará as bases do regime democrático”, finalizou.