Por Ricardo Marques de Almeida
Com a entrada em vigor da Lei 14.230/2021, as ações civis públicas por ato de improbidade administrativa, ajuizadas pelo ente público sob patrocínio de sua advocacia pública, passaram a se submeter ao seguinte dispositivo:
“Artigo 3º — No prazo de 1 (um) ano a partir da data de publicação desta Lei, o Ministério Público competente manifestará interesse no prosseguimento das ações por improbidade administrativa em curso ajuizadas pela Fazenda Pública, inclusive em grau de recurso.
§ 1º. No prazo previsto no caput deste artigo suspende-se o processo, observado o disposto no art. 314 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil).
§ 2º. Não adotada a providência descrita no caput deste artigo, o processo será extinto sem resolução do mérito”.
Na atuação diária na tutela coletiva, alastraram-se os despachos judiciais que, na verdade, são verdadeiras suscitação de dúvida quando pedem às partes, ao ente público e ao Ministério Público Federal que se manifestem sobre a aplicabilidade do Direito material e a ratificação da posição processual do ente público, esteja ele como autor ou assistente (em geral litisconsorcial, o que o torna autor também).
Como advogado público, manifesto-me pela presunção da constitucionalidade da lei, curvando-me ao entendimento sobre o Direito material que vier a ser sustentado pelo Parquet, em conclusão. Mas, ante a independência técnica do advogado, não deixo de contribuir para o debate.
Entendo que o artigo 3º, ao prescrever que “no prazo de 1 (um) ano a partir da data de publicação desta Lei, o Ministério Público competente manifestará interesse no prosseguimento das ações por improbidade administrativa em curso ajuizadas pela Fazenda Pública, inclusive em grau de recurso”, está voltado para o passado e criou uma condição de prosseguibilidade, e não uma legitimidade exclusiva.
Com efeito, José Afonso da Silva ensina que, até o regime constitucional anterior à Constituição de 1988, descentralizaram-se as funções de Ministério Público, de tal sorte que o Ministério Público Federal se tornou fundamentalmente um órgão de defesa dos interesses da União em juízo. As funções de Ministério Público tornaram-se marginais, e ainda mais quando a Constituição de 1937 extinguiu a Justiça federal. Não foi sem razão que os membros da instituição chamaram-se procuradores da República (Silva, José Afonso. “Comentários contextuais à Constituição”. 9ª ed. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 617). Anteriormente, sob a vigência da Lei 7347/1985 e da Lei 8429/1992, em âmbito federal, o papel de advogado público era concentrado no Parquet federal até a criação efetiva da Advocacia-Geral da União, que se deu a partir da LC nº 73/1993.
Apesar da cisão dos órgãos e do direito de ação ser de titularidade do ente lesado (artigo 5º, XXXV, da CF), a lei, segundo dizem, aparentemente retirou da Fazenda Pública a capacidade de postular essas providências para combater a improbidade em seu nome, o que se dava por intermédio sua advocacia pública, o advogado do ente público. Quem anomalamente voltou a fazer esse papel pontualmente em matéria de improbidade foi o MPF.
O artigo 3º, que fala em “ratificar”, foi introduzido na lei a pretexto do discurso do aumento de poder do Ministério Público, atribuindo-lhe legitimidade exclusiva, sem pesarem algumas questões interessantes ainda não enfrentadas. Se o pedido de ajuizamento vier do gestor, o MP atuará como advogado público, como procurador, ou terá independência funcional, como Parquet? Se a Administração Pública concluir num processo disciplinar pelo cometimento de improbidade e demitir o servidor, poderá o MP concluir que não houve improbidade e tomar providências contra o Estado? Por outro lado, haveria a dicotomia entre uma improbidade administrativa para fins administrativos e uma improbidade administrativa para fins judiciais? Apesar de as instâncias cível, disciplinar e penal serem independentes, o ilícito é único, não é à toa que todo crime implica improbidade e toda sentença penal absolutória que nega autoria ou o fato faz coisa julgada nas demais instâncias, afora a prova emprestada, que é uma questão processual. Seria um nonsense para a teoria geral do Direito.
Ratificar é confirmar, é deixar como está. Se o MPF ratifica uma ação proposta pela autarquia ou pela União, ele concorda com a sua autoria, sua legitimidade e sua causa de pedir e pedido (mérito). O verbo empregado pela lei, para se entender que houve retirada de legitimidade, deveria ter sido outro, até mesmo porque a AGU não é parte, ela é advogada de uma parte, como o nome da instituição já diz. O MPF, por sua vez, tem capacidade de estar em juízo quando é demandando e a parte é a União, que é representada por meio da AGU. Persiste, ainda, a possibilidade de assistência litisconsorcial, que torna a Fazenda Pública titular dos mesmos direitos e obrigações processuais do MP, tornando-se autora superveniente.
Da leitura da nova lei, que não alterou o artigo 5º da LACP, tampouco — e nem podia — alterou o artigo 5º, XXXV, da CF, não existe a vedação da Fazenda Pública propor ação civil pública de improbidade, mas da necessidade de ratificação do MP das ações propostas pelo ente público lesado. Seria uma espécie de custos legis temporária, uma estranha condição de prosseguibilidade que não atingiria novas ações, pois sua origem da legitimidade, como já dito, é constitucional, não podendo nenhuma lei retirar do Judiciário a apreciação de lesão ou ameaça de lesão. Ao falar de órgãos, aliás, vale lembrar que a advocacia pública não tem legitimidade, ela atua como representante de uma parte, como o nome Advocacia Geral da União já dá a entender. O MPF tem capacidade de estar em juízo. Quando é demandando, quem o defende, em nome da União, que é parte no processo, também é a AGU. Outra atecnia ao se relacionar “ratificar” com “exclusão de legitimidade”.
O Parquet é indispensável e, no dia a dia, sua atuação generosa, muitas vezes, corrige rumos da gestão que a vinculatividade do parecer jurídico não é capaz. Mas entender que “ratificar” é excluir a legitimidade da Fazenda Pública, além ultrapassar a capacidade expressiva da linguagem, cria um problema para duas instituições: para o Poder Executivo, que pede ao seu possível novo advogado em improbidade uma providência, que tem plena autonomia para negá-la, e para o Parquet, que tem seu trabalho redobrado, ratificando processo em que atua como custos legis, por força da LACP, não havendo necessidade prática de ratificar nada que já não seja de seu conhecimento. Mas se a lei manda, até ser declarada inconstitucional ela deve ser cumprida.
Nesse vai e vem, o que não se pode dar causa é à prescrição intercorrente. Improbidade não pode ser coisa do passado, mas pode render frutuosos estudos à academia, como já vem acontecendo.
Ricardo Marques de Almeida é Procurador Federal associado à ANAFE.
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