O Direito de certa forma já nasce como um mundo paralelo ao mundo físico, empírico, fenomênico, isto é, o mundo onde ocorrem os eventos captáveis pelos sentidos humanos. Essa forma de explicar o Direito, muito bem exposta por Marcos Bernardes de Mello [1], é muito útil para compreensão do universo jurídico.
Assim, por exemplo, a morte é um evento do mundo fenomênico. Os conceitos a descrevem com base nos elementos empíricos, a partir de critérios médicos que indicam as características que determinam o fim da vida. Esses mesmos conceitos são o vínculo entre o mundo fenomênico e o mundo jurídico. Uma vez ocorrido o evento morte no mundo fenomênico, e estando esse evento previsto em uma hipótese de incidência do mundo jurídico, haverá a subsunção do fato às normas pertinentes, surgindo um fato jurídico.
Entre as consequências jurídicas do fato morte, por exemplo, estão a extinção de eventuais penalidades que a pessoa (de cujus) eventualmente deveria cumprir e a transmissão da propriedade de seus bens para seus herdeiros. Podemos notar que os bens não têm sua natureza alterada no mundo físico. Apenas no mundo jurídico há uma alteração, uma alteração na titularidade, que passa do falecido para seus herdeiros.
O mundo jurídico, então, é uma abstração. Só existe intelectualmente, inteligivelmente. Embora essa vinculação entre o Direito e o mundo fenomênico aparentemente sempre tenha existido, a evolução social, em princípio, tem acarretado uma transformação significativa no mundo fenomênico e transplantado cada vez mais os fatos jurídicos deste mundo para um mundo também abstrato.
Alguns suportes fáticos estão deixando de existir no mundo concreto e tangível para se transformar cada vez mais em algo intangível, abstrato, ainda que muitas vezes baseados em algum elemento efetivamente físico. Basta pensar no exemplo do cheque de papel, cada vez mais substituído por meios de pagamento digitais. Outros suportes fáticos estão sofrendo mudanças profundas em sua matéria, ou seja, nas substâncias de que eram feitas as coisas, e na forma, ou seja, no modo como as coisas se apresentavam.
Para dar outro exemplo, este texto que você está lendo provavelmente não está em uma folha de papel impresso, mas na tela de seu computador, tablet ou celular. O texto não se confunde com seu aparelho, mas há nesses equipamentos um suporte físico para ele. Nesse momento o texto provavelmente está armazenado eletronicamente na memória de seu aparelho, isto é, fisicamente. Mas os bits armazenados não são inteligíveis diretamente. Necessitam de equipamentos e programas de computador (softwares) como intermediários para transformá-los em um padrão inteligível, em algo compreensível. Texto escrito em papel passa a ser texto na tela de aparelho eletrônico. Ainda que esse exemplo não tenha tanta relevância jurídica, exceto pelos direitos autorais ou pela responsabilidade decorrente da livre manifestação do pensamento, basta pensar num contrato escrito em um computador e assinado digitalmente para compreender melhor essa mudança.
Esse fenômeno de transformação da matéria e da forma e, mais precisamente, de tendência à abstração está presente em várias situações.
Houve um momento na história em que o dinheiro consistia em metais, que passaram a ser depositados em bancos mediante a entrega de certificados de depósito. Esses certificados passaram a fazer as vezes do dinheiro. Os depositários começaram a emprestar os metais depositados acarretando a perda do lastro metálico dos certificados. Esses certificados passaram a funcionar apenas como meros registros contábeis nos bancos, isto é, créditos contra os bancos e cada vez mais o próprio dinheiro em papel foi perdendo importância e está prestes a se tornar digital [2].
O fenômeno também é percebido na mudança que as corporações tiveram com a desvinculação entre sua propriedade e seu controle [3]. Os donos dos objetos físicos da empresa, ou seja, de seus edifícios e equipamentos, que dirigiam pessoalmente todas suas atividades, passam a ceder o controle da atividade para outros, profissionais e especializados, ficando preocupados apenas com a manutenção e crescimento do negócio e, principalmente, da riqueza. Distanciam-se, assim, dos objetos de sua propriedade para tornar o negócio mais competitivo.
Os negócios, por sua vez, desde há muito tempo já alcançavam áreas distantes do globo. Não por outro motivo os europeus conquistaram as Américas. Mas aquilo que era realizado em duas etapas e com viagens que levavam meses também se transformou. Antes, um navio, por exemplo, deixava a Europa e se dirigia para a América. Na América, adquiria produtos e viajava longos períodos para realizar sua venda na Europa. Havia assim uma operação de venda e compra na América e uma de venda e compra na Europa. Agora, com os meios de comunicação de alcance global, o fornecedor da América já realiza sua venda diretamente para o comprador da Europa. E os meios de transporte são mais modernos e mais rápidos. Aliás, nesse último exemplo começam a se tornar mais relevantes questões como a definição do local onde foi realizado esse negócio jurídico, o ordenamento jurídico aplicável e principalmente como garantir o cumprimento dos contratos.
Não só os negócios, mas os processos em geral se desvinculam do papel. Processos aqui não apenas no sentido de rotinas de trabalho das organizações, mas também processos administrativos e judiciais.
A inteligência das pessoas, que antes se materializava em pedaços de papel ou pela comunicação verbal direta e presencial, atualmente é transmitida quase instantaneamente via digital. A telecomunicação moderna começa com meras transmissões de textos cifrados pelo telégrafo, passa pela transmissão por rádio e chega a nossos dias com áudio e vídeo com grande resolução e com velocidade cada vez maior com alcance global.
Assim, o dinheiro sai da carteira, o dono sai do prédio da empresa, o administrador sai do escritório, os negócios e processos saem do mundo tangível.
Com a pandemia, o próprio trabalho assalariado também saiu dos ambientes físicos das organizações, permitindo distinguir as tarefas que exigem presença física e as que não exigem. Mas a própria exigência de presença física passa a ser desvinculada da necessidade de um corpo humano estar presente no mesmo local em que uma tarefa física é realizada. Restaurantes no Japão já empregam garçons-robôs controlados à distância por seres humanos [4]. Médicos conseguem realizar cirurgias à distância por meio de robôs [5].
O trabalho se desvincula da empresa. A inteligência se afasta do corpo e viaja em velocidades cada vez maiores.
A vida, finalmente, desconecta-se de nossos corpos. Pessoas passam horas navegando na internet, vendo, ouvindo, pensando. A consciência deixa de ser influenciada por objetos físicos concretos e próximos, ao alcance da mão, para ser tocada por sons e imagens que representam ou não o mundo real e que vêm de todos os cantos do globo.
Por outro lado, no campo da abstração, dada sua flexibilidade, seu caráter maleável e impreciso, busca-se algo de padrão, algo que se aproxime do concreto que foi abandonado. Buscam-se os conceitos, ou seja, construções intelectuais fixas para organizar e dar ordem às abstrações e interpretar esse novo campo onde se navega.
Atos jurídicos continuam sendo manifestação da vontade. Mas se essa manifestação, que antes era formalizada para fins de prova principalmente no papel, agora é registrada em bits. Surgem os problemas de identificar o verdadeiro autor dos atos registrados digitalmente e de garantir a autenticidade das provas. Pela internet fica difícil saber com quem interagimos, podendo ser apenas uma máquina do outro lado [6].
Assim como a dose de algumas substâncias muitas vezes é o que distingue o veneno do remédio, uma mudança abrupta na dose de tempo necessário para realizarmos nossas atividades e nossas comunicações podem causar impactos imprevisíveis na saúde e no planeta. Certamente comunicações mais ágeis geram negócios de modo mais frenético. Mas a mesma inovação que permite produzir os bens de que uma população cada vez maior necessita pode gerar uma exploração e uma degradação do planeta com uma velocidade superior àquela com que a natureza se regenera.
Já se notam algumas diferenças no objeto de proteção do Direito com essas transformações, até porque elas trouxeram problemas que antes não existiam.
Antigamente, em um dia normal de trabalho, alguém podia interagir com muitas pessoas, mas uma de cada vez presencialmente ou pelo telefone. Hoje, as pessoas não esperam na fila para serem atendidas presencialmente ou pelo telefone. Em vez disso, deixam sua mensagem e partem para outra interação. Os diálogos e as interações se multiplicam, muitas vezes simultaneamente.
O excesso de pessoas com as quais cada um conversa por dia e às quais sua imagem e ideias chegam faz surgir preocupação com a paz, com o sossego, com o foco das atenções. O tempo de atenção passa a ser um bem precioso. O direito trabalhista de repouso já começa a se transmutar para direito de desconexão. Passa-se a falar em direito aos dados pessoais, ao esquecimento, a não ser rastreado, a não ser monitorado, a não ser obrigado a olhar ou a ouvir, ao silêncio, a não ser impactado, a não ser influenciado indevidamente para consumir e mesmo para exercer os mais importantes atos da democracia.
Ao mesmo tempo em que pode haver ocasiões em que as pessoas queiram fugir do mundo digital, por outro lado esse mundo pode se tornar cada vez mais atrativo. A construção de cenários com realidade virtual pode oferecer a oportunidade de vivenciar experiências que misturam sonho — porque a pessoa não conseguiria ter aquela experiência no plano real — e realidade — porque sua vivência é consciente. Essas realidades podem ser utilizadas para entretenimento, como no caso da tecnologia que permite um passeio virtual por um museu. Mas também podem ser empregadas para a efetivação de negócios jurídicos. Assim, por exemplo, em vez de uma pessoa acessar o site de um supermercado para fazer suas compras, pode, utilizando realidade virtual, fazer uma efetiva visita virtual ao supermercado, percorrer seus corredores e pegar produtos nas prateleiras, como se estivesse lá efetivamente [7].
De todo modo, enquanto a concretude dos objetos do mundo empírico pode oferecer uma base ou suporte mais estável para os conceitos referidos a eles, quando se passa para o plano abstrato os conceitos e o próprio pensamento se tornam mais fluidos.
Com essa passagem, há dois apontamentos dignos de nota. O primeiro é o fato de tal fluidez dificultar a apreensão e a operação com os conceitos, o que pode, de certa forma, tornar mais “vulneráveis” os atores. O segundo diz respeito ao fato de muitas vezes as telecomunicações não serem estabelecidas apenas entre emissor e receptor da mensagem ou da manifestação do pensamento. Em vez disso, entre esses dois atores, alguns intermediários podem estar colocados, por vezes grandes empresas e de forma oculta.
Se até aqui o Direito já vislumbrou relações de desequilíbrio que justificaram tratamento diferenciado, como, por exemplo, entre empregadores e empregados e entre fornecedores e consumidores, é de se perguntar se seria o caso de essas relações no mundo virtual também receberem algum tratamento peculiar, tanto pela eventual participação de um terceiro oculto ou não, quanto pelo emprego de técnicas e algoritmos que possam eventualmente influenciar o comportamento das pessoas e sua autodeterminação.
Talvez venha a surgir uma ética própria para o mundo virtual ou quiçá um ordenamento jurídico específico para a atuação das pessoas nesse plano, ainda que por meio de avatares. O Direito precisa continuar avançando, pois o intangível pode ser abstrato, mas os perigos podem ser bem concretos.
[1] Teoria do fato jurídico: plano da existência.22. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019, e-book, capítulos I e II.
[2] SARAI, Leandro. O futuro do sistema financeiro no passado da humanidade. In: IWAKURA, Cristiane Rodrigues; LIMA, Felipe Herdem. Novas tendências do Sistema Financeiro Nacional. Londrina, PR: Thoth, 2021, p.255-276. BANCO CENTRAL DO BRASIL. Moeda digital do Banco Central do Brasil: Diretrizes. Disponível em: https://www.bcb.gov.br/conteudo/home-ptbr/TextosApresentacoes/20210524_Diretrizes_CBDC_BCB_vPub.pdf Acesso em: 2 out. 2021.
[3] FAMA, Eugene F.; JENSEN, Michael C.. Separation of Ownership and Control. The Journal Of Law & Economics, [s. l], v. 2, n. 26, p. 301-325, jun. 1983. Disponível em: https://www.jstor.org/stable/725104. Acesso em: 2 out. 2021.
[4] FARINACCIO, Rafael. Bar no Japão permite que garçons com paralisia controlem robôs remotamente. Techmundo. 30 nov. 2018. Bar no Japão permite que garçons com paralisia controlem robôs remotamente – TecMundo Acesso em: 2 out. 2018.
[5] MORRELL, Andre Luiz Gioia et al. Evolução e história da cirurgia robótica: da ilusão à realidade. Revista do Colégio Brasileiro de Cirurgiões, v. 48, 2021.
[6] WIKIPEDIA. Na Internet, ninguém sabe que você é um cachorro. Na Internet, ninguém sabe que você é um cachorro – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org) Acesso em: 2 out. 2021.
[7] COVRE, Raisa. 6 Aplicações de Realidade Virtual e Aumentada para o varejo. Novavarejo. 17 mar. 2017. Disponível em: https://www.consumidormoderno.com.br/2017/03/17/aplicacoes-realidade-virtual-varejo/ Acesso em: 30 nov. 2021.
Leandro Sarai é doutor em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, professor credenciado pela Escola da AGU e procurador do Banco Central do Brasil.