Num artigo especial publicado pelo Conjur nesta segunda-feira (1º), o advogado público e doutor em direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (EFRGS), Lademir Rocha, e o bacharel em direito pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), especialista em Direito Público pela Escola Superior da Advocacia-Geral da União e advogado, Pablo Bezerra, avaliaram a PEC 65/2023, que transforma o Banco Central numa “empresa pública”, como uma escolha imprudente.
Segundo os autores, uma análise da modelagem institucional dos bancos centrais revela uma preocupação em assegurar as diversas dimensões da autonomia. Contudo, não há diretriz inequívoca acerca de uma natureza jurídica ideal. Entende-se, ao contrário, que a natureza jurídica dos bancos centrais deve observar a tradição e as balizas legais e constitucionais de cada país.
“É possível qualificar a PEC 65/2023, defendida como solução para os reconhecidos problemas financeiros enfrentados pelo BCB, como uma escolha imprudente. Uma escolha que, se tivesse sido tomada por uma das instituições autorizadas a operar pelo BCB, sofreria censura por não haver ponderado adequadamente os riscos jurídicos e financeiros implicados e a exploração de soluções geradoras de menor insegurança jurídica, institucional e (por que não dizer) financeira”, afirmam.
Confira a publicação em https://x.gd/KClu5
OPINIÃO
Banco Central como ‘empresa pública’ é escolha imprudente
Tramita no Senado a PEC 65/2023, de autoria parlamentar, que altera o regime jurídico do Banco Central. A proposta busca conferir à instituição autonomia orçamentária e financeira. Segundo sua justificativa, o robustecimento da autonomia ao BC por meio da Lei Complementar nº 179, de 24 de fevereiro de 2021, não foi suficiente para assegurar as autonomias orçamentária e financeira. Para avançar nessa direção, seria necessário alterar o arcabouço constitucional e legal aplicável à autarquia, mudando sua própria natureza jurídica.
A proposta se desenvolve em três eixos: a transformação do BC de autarquia em empresa pública, conferindo-lhe personalidade jurídica de direito privado em suposta aderência ao padrão internacional seguido por outros bancos centrais; a supervisão do cumprimento da missão institucional da autoridade monetária exclusivamente pelo Congresso; e o uso das receitas de senhoriagem, elemento integrante do chamado Orçamento da Autoridade Monetária, para o custeio das despesas da entidade, incluindo gastos com pessoal.
Cada um desses aspectos da PEC 65/2023 merece análise específica, mas o momento é de problematizar os riscos implicados na mudança da natureza jurídica do BC de autarquia para empresa pública, alguns dos quais foram explorados durante audiência pública na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado em 18 de junho.
Embora se reconheça que o BC tem encontrado dificuldades em custear suas despesas operacionais para levar adiante projetos de relevo econômico e social, como o Pix, o Drex e o open banking, e em reter servidores qualificados, o caminho traçado na PEC 65/2023 não foi o da evolução incremental da entidade pública, mas o da mudança disruptiva de seus alicerces institucionais.
Conforme advertiu na audiência pública da CCJ o ex-diretor do BC e ex-vice-presidente do Bank for International Settlements (BIS), Luiz Awazu Pereira da Silva, o balanço de riscos da escolha feita não recomenda o caminho adotado, pois tamanha mudança põe em risco a trajetória evolutiva que tem levado ao aprimoramento da atuação do BC como gestor da política monetária e autoridade de regulação e supervisão do mercado financeiro.
Ao contrário do que afirmam os defensores da PEC 65/2023, a mudança da natureza jurídica não implica em alinhamento em relação ao padrão internacional aplicável aos bancos centrais.
Com efeito, uma análise da modelagem institucional dos bancos centrais revela uma preocupação em assegurar as diversas dimensões da autonomia. Contudo, não há diretriz inequívoca acerca de uma natureza jurídica ideal. Entende-se, ao contrário, que a natureza jurídica dos bancos centrais deve observar a tradição e as balizas legais e constitucionais de cada país.
Por outro lado, pode-se afirmar que há uma tendência histórica em atribuir aos bancos centrais autônomos natureza jurídica de direito público. Mesmo onde os bancos centrais surgiram como entidades de direito privado, a evolução institucional deles se deu em direção a uma progressiva publicização marcada pela recepção de atribuições estatais em caráter monopolístico, como a emissão da moeda, a execução da política monetária e a supervisão de instituições financeiras. Esse é o caso, por exemplo, dos bancos centrais da Inglaterra, França, Itália, Portugal e México, todas instituições regidas pelo direito público.
Autarquia federal
No caso da nossa autoridade monetária, sua a evolução institucional é marcada pelo seu surgimento como autarquia federal, nos termos da Lei nº 4.595, de 31 de dezembro de 1964. Na ocasião, a nova instituição recebeu atribuições que, durante muitos anos foram realizadas por um banco público comercial, de direito privado, o Banco do Brasil S.A., antes de serem parcialmente transferidas para a Superintendência da Moeda e do Crédito, extinta para dar lugar ao BC. Sob esse aspecto, como bem ponderou o economista André Lara Resende durante a audiência pública na CCJ do Senado, transformar o Banco Central em empresa pública não seria um avanço institucional, mas um retrocesso de mais de 80 anos.
A atuação do BC “sobre” e “no” mercado envolve funções próprias de Estado, não se admitindo, a essa altura da evolução institucional da atuação voltada à defesa do valor da moeda e à busca da estabilidade e do regular funcionamento do mercado financeiro, que se possa atribui-las a entidade de direito privado. Senão vejamos.
Ao atuar como autoridade monetária, o Bacen realiza, em nome da União, a emissão monopolística da moeda de curso forçado, devendo buscar a preservação de seu valor e a realização, ainda que subsidiária, de outros objetivos no interesse da coletividade, nos termos da LC nº 179, de 2021. Para tanto, maneja, com autonomia operacional, os instrumentos de política monetária.
Isso implica na realização de relações negociais que não têm como objetivo a busca do lucro, mas a concretização dos objetivos das políticas monetária e cambial. Eventual mudança na natureza jurídica do executor dessas políticas, que são manifestação do poder estatal, comprometeria a segurança da teia de relações jurídicas celebradas para conferir estabilidade à moeda e a controlar as flutuações no mercado de câmbio. Em vez de contribuir para a estabilidade desses mercados, a insegurança jurídica gerada pela alteração disruptiva na natureza jurídica do BC tem o potencial de tornar ainda mais instáveis relações que são estruturalmente incertas.
Da mesma forma, a atuação do BC na qualidade de regulador e supervisor dos segmentos mais significativos e sistemicamente relevantes do mercado financeiro está ancorada na sua personificação como entidade de direito público. Aliás, a própria ideia de “autoridade monetária”, muitas vezes atribuída aos bancos centrais, já sugere uma entidade que exerce proeminência ou poder vertical de mando sobre terceiros. E isso caracteriza justamente o regime jurídico de direito público, em contraste com o direito privado, marcado pela lógica horizontal negocial da igualdade.
Agente regulador
Como guardião do acesso, da permanência e da saída organizada de instituições no sistema financeiro, o BC maneja ferramentas, normas e procedimentos de direito público, expressivos da supremacia do poder estatal. É o caso do regime de autorizações, que funciona como barreira de entrada no mercado financeiro, a supervisão direta e indireta de instituições financeiras e outras entidades reguladas, a edição de normas regulatórias de escopo prudencial e comportamental, instauração de processos administrativos punitivos e aplicação de sanções, e a decretação de regimes de resolução, que funcionam como sucedâneos dos regimes de recuperação e de falências de entes empresariais.
Todo esse arsenal de poderes de mando interfere na liberdade de empresa e restringe direitos econômicos no campo do sistema financeiro. Esses poderes revelam que o Banco Central não está — nem pode estar — em relação horizontal de igualdade frente aos entes supervisionados. Contudo, a PEC 65/2023 corrói as bases dessa proeminência jurídica do agente regulador, colocando em risco a legitimidade jurídica dessa atuação, em prejuízo à segurança jurídica dos agentes públicos e dos atores privados sujeitos ao poder regulatório do Bacen.
Por fim, no tocante ao Sistema de Pagamentos Brasileiro (SPB), o BC figura, ao mesmo tempo, como agente regulador e supervisor de arranjos e instituições de pagamento e como provedor de sistemas de pagamento e de compensação. Ambas as dimensões dessa “atuação de Jano” evoluíram, com eficiência internacionalmente reconhecida, segundo os pressupostos do direito público inerentes à sua condição autárquica.
Esses exemplos ajudam a compreender que a escolha disruptiva veiculada através da PEC 65/2023 não atende às exigências de cautela que devem orientar a regulação financeira. Não há demonstração inequívoca da necessidade da alteração da natureza jurídica do BC para avançar em direção à autonomia financeira em moldes empresariais. Ademais, a escolha por caminhar em direção a maior autonomia orçamentário-financeira deve vir acompanhada de acurada (re)avaliação das estruturas e procedimentos de governança.
A ampliação recente da autonomia pessoal, por meio da outorga de mandatos aos dirigentes do Banco Central, é experiência ainda recente e atravessada por polêmicas e incertezas, na medida em que não observamos ainda nem a primeira transição de presidentes da instituição. Trata-se de experiência ainda carente de maturação cultural e política, antes de se lançar a instituição em uma experiência ainda mais disruptiva.
Por essas razões, é possível qualificar a PEC 65/2023, defendida como solução para os reconhecidos problemas financeiros enfrentados pelo BC, como uma escolha imprudente. Uma escolha que, se tivesse sido tomada por uma das instituições autorizadas a operar pelo Bacen, sofreria censura por não haver ponderado adequadamente os riscos jurídicos e financeiros implicados e a exploração de soluções geradoras de menor insegurança jurídica, institucional e (por que não dizer) financeira.