Em conversa inaugural do Centro de Estudos Entrevista, o Coordenador do Centro de Estudos da ANAFE, Marcelo Kokke, conversou com a Advogada da União, ex-coordenadora do Centro de Estudos da ANAFE, Cynthia Araújo.
Confira a entrevista completa:
1. Olá Cynthia! Inicialmente, parabéns por todo o seu trabalho junto à ANAFE. Conte um pouco de sua formação e de sua trajetória na AGU.
O trabalho à frente do Centro de Estudos me trouxe muitas alegrias, foi uma troca muito positiva com os associados da ANAFE. Fico feliz de saber que você vai continuar esse trabalho.
A ideia de fazer concurso como fim em si mesmo nunca me agradou e eu já sabia que não queria ser juíza, promotora ou delegada, como grande parte dos meus amigos. Gostava da ideia de advogar, mas queria exercer uma função pública, que tivesse a ver com a defesa do Estado. Por muito tempo, pensei em ser diplomata. A descoberta da advocacia pública, já no fim da faculdade, fez com que eu me encontrasse dentro do Direito para além do mundo acadêmico, em que sempre estive muito envolvida.
De certa forma, tudo isso se une na minha trajetória como advogada da União. Fui ponto focal para assuntos internacionais e, depois do mestrado, comecei a me dedicar muito a assuntos de saúde na AGU e o doutorado no tema foi inevitável. Escrevi sobre o que chamo de direito à esperança, em contraposição ao direito à saúde, no contexto de pacientes com câncer avançado, ideia que surgiu em razão da minha atuação, especialmente como coordenadora do Grupo de Administração e Patrimônio Público da Procuradoria da União em Minas Gerais, sempre com muito apoio e colaboração de colegas interessados no assunto. Fui o membro indicado pela AGU no Comitê de Saúde de Minas Gerais, iniciativa do CNJ, em que também representei a AGU em audiência pública sobre processos de saúde.
2. As relações entre Direito e ciências ligadas à saúde é mais próxima do que se imagina. Como você caracterizaria o marco regulatório brasileiro envolvendo as políticas públicas de saúde?
Tentando resumir bem um assunto muito complexo, posso dizer que nossa regulação em saúde é uma das mais completas do mundo, se não for a mais completa. Sem dúvida isso é importante para que os serviços de saúde sejam bem orientados e consequentemente geridos e prestados. Mas temos dois problemas sérios. A normatização ainda é pouco conhecida pelos operadores do Direito, mesmo aqueles que se julgam especialistas na matéria. Em parte, isso é culpa de um conjunto extremamente extenso, difícil de ser encontrado e, muitas vezes, compreendido, em razão do pouco cuidado na organização de matérias correlatas, especialmente no âmbito infralegal. Por outro lado, o Decreto n. 7.508/2011, por exemplo, uma das normas mais importantes que temos, parece ser desconhecido pela maior parte das pessoas que deveriam conhecê-la, então vai muito além da complexidade da regulamentação. Esse desconhecimento se reflete também na chamada judicialização da saúde. Há muitos anos, escrevi um artigo sobre a dificuldade dos magistrados em reconhecer a força normativa de regras de saúde, buscando a aplicação direta de princípios, o que faz com que desconsiderem a maior parte das normas que regulam as políticas públicas. Nesse texto, eu lembrava que, para afastar a aplicação de determinada regra, o julgador deveria justificar por que não a está aplicando, inclusive com eventual reconhecimento de ilegalidade ou inconstitucionalidade. Essa realidade de desconhecimento ou desconsideração pelas regras, infelizmente, pouco se alterou.
3. Há problemas intensos quando se pretende analisar e fixar os papéis e limites das atribuições do Estado em matéria de saúde. Em termos de direito comparado, como você situaria o Brasil em face de políticas públicas de saúde desenvolvidas tanto em países centrais quanto em países periféricos, considerando os fatores geoeconômicos mundiais?
O SUS é o maior sistema de saúde pública do mundo, o que já diz muita coisa. Embora seja comum no nosso meio – servidores públicos com altos salários – desdenhar do sistema, mais de 75% da população brasileira depende exclusivamente dele e, de maneira geral, terá, sim, acesso aos serviços de saúde buscados, com maior ou menor velocidade e maior ou menor qualidade. Isso não significa que o SUS funcione bem em tudo e o tempo todo, claro. Temos diferenças regionais abissais e políticas iguais que funcionam bem ou mal em lugares diferentes.
O Brasil é referência mundial em diversos assuntos de saúde. Apesar de todos os ataques que o SUS sofre desde seu início e vem sofrendo especialmente nos últimos anos, somos referência em imunização coletiva e transplante, por exemplo. Ao contrário de muitos países, mesmo desenvolvidos, temos redes interligadas de saúde que permitem respostas adequadas a problemas complexos.
Mesmo pesquisadores e gestores do Reino Unido, que têm o NHS – o sistema de saúde inglês em que é inspirado o SUS –, exaltam o nosso sistema de saúde. Aliás, o NHS tem, em maior ou menor medida, exatamente os mesmos problemas que o SUS. Ainda assim, a população inglesa reconhece que é um de seus mais valiosos bens.
Acho difícil fazer uma comparação global em termos de políticas públicas de saúde – na verdade, nem teria o conhecimento necessário para isso. Mas os Estados Unidos, por exemplo, é o país que mais investe em saúde no mundo, em termos absolutos, e a maior parte da população está desassistida por não existir um sistema como o nosso. O Brasil, embora sempre criticado pelo gasto com saúde, é um dos que mais gasta no âmbito da América Latina, o que, no entanto, nem sempre se reflete em eficiência. Temos países com excelentes sistemas públicos de saúde, como Canadá e Inglaterra, e temos países com excelentes serviços de saúde, mas ligados à condição de trabalhador, como a Alemanha. Dentre os países periféricos, também há diferenças enormes, especialmente se pegarmos um continente como o asiático. Mas, falando especificamente do Direito, o que posso dizer é que não conheço nenhum lugar em que as normas sejam tão desprezadas como acontece no Brasil. Na maior parte do mundo, é impensável afastar o parecer técnico de órgãos congêneres à Anvisa ou à Conitec em prol da opinião de um médico.
4. Dentre os julgados relevantes em matéria de políticas públicas de saúde, quais você destaca? Qual sua análise crítica acerca desses julgados?
Assim, de pronto, eu destaco o RE 657.718, que definiu o dever do Estado de fornecer medicamento não registrado pela Anvisa sob determinadas condições, e o Resp 1.657.156, que definiu a obrigatoriedade do Estado de fornecer medicamentos não incorporados pelo SUS, também sob determinadas condições. Os dois têm muitos problemas. Sobre o primeiro, eu fiz uma análise com a colega aposentada Silvana Junqueira, para a Revista da Advocacia Pública Federal, em 2019. O acórdão ainda não havia sido publicado, mas a análise segue a mesma. Em síntese, todas as condicionantes colocadas pelo STF são questionáveis e, na prática, o julgado pouco contribuirá para uma definição sobre o tema.
Sobre o julgado do STJ, para mim e para muitos colegas estudiosos do tema, o julgamento representou um amplo desconhecimento sobre as normas e os processos de saúde. É um julgado que não decide, que não firma uma posição. Ao permitir que um laudo médico afaste políticas públicas regularmente instituídas e análises de evidências complexas, estamos basicamente mantendo tudo como está. Em outras palavras, uma judicialização da saúde que permite quase três milhões de processos judiciais ativos em uma loteria judicial absurda – embora amplamente concessiva – a despeito de toda a regulação que existe.
Não posso deixar de destacar também o julgamento da ADI 5501, em que foi declarada a inconstitucionalidade da lei 13.269/2016, por meio do qual se autorizava o uso, a produção e a distribuição da fosfoetanolamina, a chamada pílula do câncer. O relatório e o voto do Ministro Barroso merecem ser lidos por todos que estudam o direito à saúde. Infelizmente, no entanto, o julgado e os argumentos não têm conduzido nem mesmo os julgamentos posteriores da própria Corte.
5. A Advocacia Pública exerce um papel fundamental na concretização e efetivação tanto constitucional quanto legal acerca das políticas públicas de saúde. Como você caracterizaria a atuação da AGU em face da concretização e papéis constitucional e social a envolver o Sistema Único de Saúde?
Fico feliz por você perguntar isso, porque acredito que a importância da advocacia pública para a formulação e concretização de políticas públicas seja algo que devemos explorar mais. Realizamos alguns eventos do Centro no ano passado com essa tônica em assuntos como educação, comunicações, meio ambiente e saúde (os Diálogos Institucionais) e pudemos perceber como os gestores reconhecem a necessidade de nossa boa atuação para a execução de políticas.
Na saúde não é diferente e a atuação da AGU é essencial para que tenhamos sucesso desde o pensar a política. Muitas pessoas só enxergam a atuação dos advogados públicos quando os veem atuando em ações judiciais que envolvem o Ministério da Saúde, a Anvisa ou a ANS, por exemplo. Mas o nosso trabalho começa bem antes, no assessoramento dos órgãos e autarquias federais, especialmente na edição normativa. Participamos da compreensão dos projetos dos gestores para que a regulamentação atenda efetivamente os seus propósitos e permita a perfeita execução das políticas públicas, fazemos verificação de sua legalidade e constitucionalidade e auxiliamos na antecipação de riscos jurídicos.
Foi notável, na última década, a aproximação entre os órgãos de atuação consultiva e contenciosa da AGU nas matérias de saúde, o que aprimorou a nossa atuação e fez com que passássemos a ser mais respeitados na execução dos nossos papeis. E isso se reflete na concretização do direito à saúde. Quanto mais participarmos da elaboração das políticas e quanto mais formos ouvidos durante a sua execução – inclusive na atuação judicial –, melhor prestado será esse direito.