*Marcelo Kokke
Uma das funções do conhecimento científico na esfera jurídica é possibilitar à sociedade a leitura de quadros sociais de crise através de construções e métodos formados a partir de estudos e análises elaborados por profissionais especialistas. O novo coronavírus coloca a sociedade como um todo assim como o Estado em uma situação de instabilidade, não somente econômica, mas também jurídica, política e social. Refletir sobre os riscos da pandemia demanda uma leitura conjunta para com os riscos de posturas casuístas e oportunistas que somente visam utilizar o desastre como uma via de concretização de ganhos pessoais.
O conhecimento científico permite expressar situações fundamentais que não podem ser ocultadas da sociedade, a fim de evitar que haja uma elevação de riscos e principalmente de ganhos e vantagens indevidos alcançados com o desastre. A análise da Covid-19 como um desastre biológico, cuja origem é ambiental, a sujeição da situação atual ao capitalismo de desastre e a necessidade de medidas institucionais já previstas na Constituição como via de resposta ao desastre são pontos necessários de abordagem.
A doença se caracteriza como um desastre biológico. Desastres não são somente grandes inundações ou secas, furacões ou tempestades. Desastres são fenômenos que desestabilizam as capacidades de resposta do Estado em face de grandes eventos cuja repercussão estressa e rompe os limites ordinários de contenção de danos e lesões a bens jurídicos, aí incluídos a vida, a integridade física, além das atividades econômicas e o equilíbrio das interações sociais.
O desastre ambiental da Covid-19 acarretou medidas drásticas de confinamento, quarentena, fechamento de empresas e comércio. O comprometimento econômico é maciço. Há efeitos de crise que se prolongarão principalmente sobre as pequenas e médias empresas, com efeitos no mercado de trabalho. Entretanto, isso não significa um efeito nocivo para uma parte de agentes nos cenários brasileiro e mundial. Apresenta-se aqui o denominado capitalismo de desastre.
O capitalismo de desastre é a face oportunista dos desastres ambientais. Ele se constituiu nos últimos vinte anos como um complexo de métodos voltados para a exploração de crises, a partir do qual grupos econômicos mais fortes e capazes de suportar o embate do desastre fomentam situações de endividamento e deságio do patrimônio de pequenos e médios empreendedores, da classe média e classes mais pobres, adquirindo maior controle do mercado, títulos de dívida a seu favor e maiores parcelas de lucros a médio e longo prazos.
Um dos exemplos mais estudados do capitalismo de desastre é o tsunami ocorrido em 2004 na Ásia, que ceifou a vida de mais de 250 mil pessoas. Uma das áreas atingidas foi a Baía de Arugam, no Ski Lanka. A crise econômica que se seguiu permitiu que grandes complexos hoteleiros comprassem e ocupassem a preço módico áreas que são hoje visitadas a altos valores por turistas em razão de suas paisagens paradisíacas.
O endividamento e a asfixia monetária dos agentes produtivos no mercado capitalista são antevistos como oportunidade de aquisição a baixo custo e cobrança de juros. O capitalismo de desastre é inimigo do capitalismo produtivo. Mas o capitalismo de desastre possui um desafio. Passar sem ser visto. O capitalismo de desastre, em face da calamidade pública, propõe o sacrifício de alguns, mas não do capital não-produtivo. O maior medo do capitalismo de desastre é o capitalismo produtivo.
Para imperar em sua lógica de aquisição e ganho financeiro, sem produção, o capitalismo de desastre atua em campanhas eloquentes para escolher aqueles que irão se sacrificar, afinal, a manutenção do capital financeiro não-produtivo deve ser resguardada. Os principais alvos do capitalismo de desastre após ocorrência de catástrofes biológicas, naturais ou antropológicas são aqueles que produzem. Volta-se para propagar iniciativas de redução de salários dos trabalhadores da iniciativa privada e pública, inclusive jogando-os uns contra os outros, volta-se para a redução de direitos e para toda uma técnica de asfixia econômica daqueles que fazem a cadeia produtiva e de consumo girar.
A lógica é singela. Se os agentes produtivos são descapitalizados, se há redução de remuneração do setor privado ou público, haverá maior endividamento, haverá menos consumo, menor capacidade de compra e pagamento de bens móveis e imóveis já adquiridos. Aqueles que possuem o capital financeiro ficam em condições de expandir seu patrimônio pela exploração dos prejuízos dos agentes do capitalismo produtivo. Mais, trabalhadores e servidores públicos, pequenos e médios empresários, todos tendem a se tornar devedores do mercado financeiro.
O novo coronavírus, na situação de desastre biológico com consequências econômicas, produz uma relva ao modus operandi do capitalismo de desastre. Provoca dívidas, induz prejuízo, propicia queda de valor de bens, semeia fragmentação de direitos e corrói o capitalismo produtivo. Como saída, os agentes do capitalismo de desastre precisam se proteger desde cedo. Apontam o dedo para indicar o que fazer antes que a sociedade dele se lembre. Aproveitam o estado de choque vivenciado.
Em geral, propõem novas reformas, novas leis, novas normas constitucionais para que no momento da crise, no momento do pânico social, esqueça-se das programações que a ciência jurídica já formulou e fez constar em normas sólidas e democráticas. O capitalismo de desastre evita que normas já existentes sejam descortinadas.
O desafio social, o desafio do capitalismo produtivo e de todos aqueles que o apoiam é justamente perceber que há saídas para além do capitalismo de desastre. Há saídas para além de um discurso de sacrifício de guerra. Essa saída para além do capitalismo de desastre promove a superação do choque e movimenta a economia em produção e consumo.
O capitalismo de desastre nada produz, seus agentes mantêm vultoso capital apenas em bancos, em instituições financeiras. É justamente sobre este capital não produtivo que o sistema jurídico fixou o instituto do empréstimo compulsório, previsto no artigo 148 da Constituição. O dispositivo determina que a União, por meio de lei complementar, pode instituir o empréstimo compulsório para atender a despesas extraordinárias, decorrentes de calamidade pública.
O tributo possui peculiaridades que são em muito favoráveis para a reversão do quadro de desastre. A primeira delas consiste justamente em não retirar valores dos agentes produtivos do mercado, em não afetar o capitalismo produtivo. Isso porque o empréstimo compulsório pode ser estabelecido sobre valores depositados em instituições financeiras apenas para aqueles que possuem capital superior a 100, 200 milhões de reais. O empréstimo compulsório pode atuar sobre aquele valor que sequer vai entrar na linha produtiva, para aqueles valores que ficam na espreita para serem utilizados sob a vertente do capitalismo de desastre.
Por isso o empréstimo compulsório vem sendo tão pouco comentado atualmente. A medida, além de fazer face a todos os prejuízos e danos que a vida e a economia produtiva estão tendo, corta a lógica do capitalismo de desastre. Ele deixa sem argumento as alegações de sacrifício a ser feito por daqueles que já estão no mercado e fazem o capitalismo produtivo girar.
Além disso, o empréstimo compulsório precisa apenas de um projeto de lei complementar. Não é necessário que haja emenda constitucional, não é necessário projetar o medo para com isso reduzir-se direitos e tornar ainda mais vulnerável a parcela produtiva da sociedade.
A pergunta que se lança é por que não se fala e debate o empréstimo compulsório sobre altos valores no mercado? Sequer aqueles que irão pagá-lo terão prejuízos, pois o Estado irá proceder à sua devolução após o período de crise. Se já iriam deixar seus valores nos bancos, qual diferença haveria para o capitalismo financeiro? A não ser que se queira com o capital implementar a exploração do desastre.
O empréstimo compulsório para a atual crise é a solução prevista constitucionalmente, a solução traçada pela ciência jurídica ao longo dos anos. Sua única ameaça é frustrar os intentos do capitalismo de desastre.
*Marcelo Kokke é professor da Dom Helder, pós-doutor em Direito Público Ambiental pela Universidade de Santiago de Compostela, procurador Federal da AGU associado à ANAFE e membro da Academia Latino Americana de Direito Ambiental.