Nesta quinta-feira (14), o Conjur publicou o artigo do procurador federal associado à ANAFE, Davi Monteiro Diniz, a respeito da superação do precedente Chevron pela Suprema Corte dos EUA, o qual estabelecia a prevalência do entendimento das agências para interpretar lacunas normativas. O estudo analisa os possíveis motivos e consequências dessa mudança, principalmente considerando os seus efeitos para o judicial review das normas editadas pela administração pública nos EUA.
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Confira abaixo o artigo completo:
Chevron e o poder discricionário da administração pública nos EUA
Muito repercutiu a decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos no sentido de afastar [1] o precedente Chevron, por ela instituído no ano de 1984 [2]. Dada a influência do direito dos EUA na administração pública de vários países, analisar esse julgamento e seus principais efeitos pode contribuir com os estudos sobre direito administrativo, como se trata a seguir.
A decisão pertence ao tema da revisão judicial de normas administrativas. Sobre o poder normativo da administração pública, cabe lembrar que, nos EUA, com a edição do Administrative Procedure Act-APA, em 1946, dois principais procedimentos administrativos foram estabelecidos para a administração pública federal: adjudication, para as decisões a serem proferidas em casos individuais; e rulemaking, para a edição de normas de efeitos gerais.
A respeito do rulemaking, a lei consolidou a orientação de que os órgãos administrativos (agencies) podem editar normas de alcance geral. Quando elas envolvem aspectos regulatórios, criando direitos ou impondo obrigações, terão efeito e força de lei quando apoiadas em autorizações do Congresso dos EUA, sendo por essa combinação de conteúdo e efeito denominadas de substantive rules ou, doutrinariamente, de legislative rules.
O APA disciplinou a elaboração e promulgação das substantive rules [3]. Os procedimentos se repartem em duas variações, denominadas de formal rulemaking e de informal rulemaking, para a primeira delineando-se etapas similares à instrução judicial, sob a fórmula hearing on the record, e, para a outra, roteiro mais simples.
Quanto ao informal rulemaking, o APA estabelece três etapas necessárias: notícia prévia da minuta da norma, com a devida justificação, a ser publicada no Federal Register (notice); oportunidade ao público para oferecer, em prazo determinado, comentários por escrito a essa minuta (comment), os quais devem ser considerados e respondidos pelo órgão proponente; e, após esse procedimento, publicação do texto final, acompanhado de declaração na qual conste o seu fundamento legal, por que ele está sendo editado e quais são os seus objetivos (a concise statement explaining the rule’s basis and purpose), no Code of Federal Regulations-CFR.
Esse poder normativo reconhecido à administração pública acabou por gerar diferentes mecanismos de supervisão conduzidos pelos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário.
Revisão das normas administrativas pelo Poder Judiciário
No âmbito do Poder Judiciário, o próprio APA trouxe disposições normativas sobre a revisão judicial dos atos administrativos, denominando suas principais classes como the arbitrary, capricious standard of review, the substantial evidence test e de novo review [4].
Um modo de considerar esses padrões de revisão é o de colocá-los sob a perspectiva de permitirem maior ou menor deferência às condutas administrativas sob análise judicial, conforme a evolução jurisprudencial desenvolvida desde o advento dessa lei. A partir de tais hipóteses, aplica-se, em regra, o arbitrary, capricious standard of review na edição de normas feitas conforme o procedimento informal (informal rulemaking).
Pelo arbitrary, capricious standard of review, a decisão administrativa não deve ser rescindida pelo Poder Judiciário se o órgão administrativo demonstrar que ela levou em consideração os principais aspectos do problema tratado, oferecendo soluções que atendam ao legalmente determinado. Desse modo, a administração pública deve comprovar não ter agido de maneira arbitrária, desarrazoada ou em confronto com disposições legais específicas. Revela-se, portanto, como critério de maior deferência judicial às ações administrativas [5].
À medida que a edição de normas administrativas substantivas foi ganhando volume e importância, o Poder Judiciário passou a demandar dos órgãos administrativos atenção aos relevantes aspectos presentes nas questões a serem reguladas, ou desreguladas, exigindo que explicitassem o embasamento racional de suas decisões e, principalmente, indicassem de modo inequívoco a previsão, na respectiva lei autorizativa, tanto para o exercício desse poder como para o respectivo conteúdo normativo escolhido pelo administrador.
Essas exigências foram ampliadas para também estabelecer a administração pública que justificasse de modo pormenorizado os motivos de seu distanciamento a respeito de abordagens regulatórias anteriores, bem como permitisse a ampla participação dos interessados no processo de formulação de normas. Já do ponto de vista substantivo, verificou-se a disposição de o Poder Judiciário corrigir procedimentos e invalidar normas administrativas que se mostrassem injustificadas por não atenderem a todas essas considerações.
Com isso, o Poder Judiciário passou a atuar não apenas verificando se as normas administrativas invadiam indevidamente direitos de liberdade e propriedade dos regulados, mas também protegendo a participação da sociedade no processo de regulação (rights of participation), seja ela iniciando o processo regulatório, mediante o direito a demandar a regulação, seja dele participando ativamente, pelo direito de ter seus argumentos efetivamente apreciados durante o processo de elaboração da norma reguladora, seja ela questionando a alteração ou a supressão da regulação existente sem o devido apoio em lei, em tudo consubstanciando-se hermenêutica judicial que foi denominada de hard-look doctrine [6].
Precedente Chevron e sua reversão
Como visto, a partir da edição do APA, o Poder Judiciário federal conferiu substância ao arbitrary, capricious standard of review adotando um seguro escrutínio sobre as razões e provas trazidas pela administração pública para justificar suas regras. Em 1984, porém, no curso do primeiro mandato do governo Reagan [7], o qual defendia intensificar o uso da administração pública federal para implementar as decisões presidenciais, substancial mudança foi conduzida pela Suprema Corte ao julgar o caso Chevron.
Nesse litígio, uma associação ambiental, o Natural Resources Defense Council-NRDC, questionou as novas regras trazidas pelo órgão executivo de regulação do meio-ambiente, a Environmental Protection Agency-EPA, que, alterando as suas normas, ampliou a tolerância a respeito da poluição industrial, assim envolvendo a Chevron Corporation, empresa voltada à exploração de petróleo e gás natural. Ao receber a controvérsia, a U.S. Court of Appeals for the District of Columbia Circuit decidiu que a nova interpretação feita pela EPA conflitava com a reiterada jurisprudência do Poder Judiciário sobre as leis ambientais, invalidando-a [8].
Como antes referido, quarenta anos após, ao se debater outra norma ambiental, a qual estabelecia a obrigatoriedade de empresas de pesca remunerarem os fiscais que acompanhavam as suas atividades, a Suprema Corte aceitou tratar da questão para especificamente revogar a doutrina Chevron, afirmando que:
A Lei do Procedimento Administrativo exige que os tribunais exerçam julgamento independente para decidir se uma agência agiu nos limites da autoridade lhe conferida pela lei. Eles não podem deferir a interpretação da lei a uma agência simplesmente porque um estatuto é ambíguo; Chevron é invalidado [10].
Diante de entendimento adotado e posteriormente revertido por orientação de inclinação conservadora que foi vitoriosa em ambos os julgados, abre-se a oportunidade para se investigar o que poderia ter estimulado essa reversão.
Reflexões sobre afastamento da doutrina Chevron
Para analisar o afastamento do precedente Chevron, cabe contextualizá-lo conforme a evolução do administrative state nos EUA. Considere-se que, no final do século 19, o entendimento clássico era o de que a imposição de limites aos particulares dependeria principalmente de lei, salvo os esparsos casos constitucionais em que o presidente da República poderia exercer esse poder de modo inerente. Nesse quadro, a teoria prevalente era a de que a administração pública seria mera correia de transmissão (transmission belt) da vontade do legislador, para assim implementar as decisões políticas do Estado. Desse modo, o papel do Poder Judiciário restringir-se-ia a verificar se essa vontade estaria sendo atendida [11].
O discernimento de que as leis transcendem comandos simples e diretos, frequentemente permitindo ampla variação nos modos de sua implementação pela administração pública, possibilitou a superação dessa abordagem.
À medida que as atribuições administrativas foram reforçadas por leis destinadas a estabelecer objetivos e conceder amplos poderes para alcançá-los, indo além da mera descrição detalhada de condutas, aviventou-se a relação entre poder discricionário administrativo, aqui empregado na criação ou na aplicação de normas, e a possibilidade de seu exercício arbitrário, sob a alegação de implementação da vontade do Estado. Isso evidenciou as dimensões política, técnica e jurídica da administração pública [12].
Uma proposta subsequente para orientar o poder discricionário da administração pública diante de lacunas legais foi estruturada no sentido de fundamentar a discricionariedade das decisões administrativas na capacidade técnica de seu conhecimento especializado, um argumento que se mostrou crucial para as reformas administrativas efetuadas na primeira metade do século 20. No entanto, tal abordagem passou a ser questionada quanto a sua efetiva correspondência com a realidade administrativa observada após o advento do APA.
Com efeito, constatou-se que medidas por vezes implementadas pela ação conjunta dos Poderes Executivo e Legislativo, como a designação de dirigentes sem expertise adequada, a impossibilidade de os servidores de carreira aplicarem seu conhecimento especializado em função de limitações normativas e gerenciais, e o esvaziamento dos processos de deliberação técnica em face do excesso de tarefas, acabavam por minar o argumento de sustentação técnica das escolhas discricionárias da administração pública, pois revelavam processos decisórios conduzidos de maneira diversa, o que também facilitava a eventual captura da ação dos órgãos administrativos por grupos de atores regulados [13].
De fato, com a deterioração da fundamentação técnica da administração pública, um aspecto passou a ter progressiva relevância no debate administrativo, referindo-se às situações em que o exercício do poder normativo estatal pode ocorrer de modo inadequado para favorecer a si ou a grupos de interesses organizados em detrimento dos administrados, por isso exigindo mais apurada compreensão sobre os motivos e consequências das ações administrativas.
Em passo com essa trajetória, antes do advento do precedente Chevron formulou-se hermenêutica própria para tratar das lacunas legais, a qual foi substituída pela Suprema Corte por ela entender que a administração pública estaria preparada para oferecer a melhor resposta normativa a esse problema. A reversão dessa percepção, após quarenta anos de sua adoção, nos dá indícios de que tal pressuposto se tornou objeto de substancial desconfiança nos EUA.
Ao resgatar a ampliação do controle judicial sobre a discricionariedade administrativa, uma consequência do afastamento da doutrina Chevron é a de demandar que a administração pública embase racionalmente o exercício do seu poder normativo nas leis autorizadoras, reafirmando a concepção na qual atos infralegais, mesmo ao serem combinados com essas leis numa ação ou programa governamental, com elas não se confundem, cabendo ao administrador demonstrar como as normas administrativas otimizam o atendimento aos propósitos legislados.
Nessa linha, mostra-se importante acompanhar se os juízes, ao efetivar esse controle, empregarão justificação racional e eliminação de arbítrio equivalentes às exigidas aos administradores públicos, em tudo se preservando os benefícios que o direito pode proporcionar ao exercício dos poderes do Estado.
*este artigo é de cunho acadêmico e não reflete necessariamente a posição das instituições nas quais o autor trabalha
[1] Loper Bright Enterprises v. Raimondo, 603 U.S. ___ (2024), acompanhado do litígio Relentless, Inc. v. Department of Commerce.
[2] Chevron U.S.A., Inc. v. Natural Resources Defense Council, Inc., 467 U.S. 837 (1984).
[3] Cf. 5 United States Code § 553.
[4] Cf. 5 United States Code § 706.
[5] BEERMANN. Jack. Inside Administrative Law: What Matters and Why. New York: Aspen Publ., 2020.
[6] SUNSTEIN, Cass. Deregulation and the Hard-Look Doctrine. The Supreme Court Review, vol. 1983, 1983.
[7] O Presidente Ronald Reagan governou por dois mandatos: 1981 a 1985 e 1985 a 1989.
[8] Natural Resources Defense Council, Inc. v. Gorsuch, 685 F.2d 718 (D.C. Cir. 1982). A relatora foi a então juíza Ruth Bader Ginsburg, que mais tarde seria nomeada para a Suprema Corte pelo Presidente Bill Clinton.
[9] Cf. o julgado citado na nota 2. O seu relator foi o Justice John Paul Stevens, nomeado para a Suprema Corte pelo presidente Gerald Ford em 1975.
[10] No original: Held: The Administrative Procedure Act requires courts to exercise their independent judgment in deciding whether an agency has acted within its statutory authority, and courts may not defer to an agency interpretation of the law simply because a statute is ambiguous; Chevron is overruled.
[11] BERLE JR., Adolf. Expansion of American Administrative Law. Harvard Law Review, vol. 30, no. 5, 1916-1917.
[12] STEWART, Richard. The Reformation of American Administrative Law. Harvard Law Review, vol. 88, no. 8, June 1975.
[13] FREEDMAN, James. Crisis and Legitimacy in the Administrative Process. Stanford Law Review, vol. 27, no. 4, April 1975.