A manchete do Estadão não deixa dúvidas. Esse direito, que já estava previsto em lei para os servidores públicos federais desde 2016, passa a valer também para os demais servidores públicos após a decisão unânime do STF no Recurso Extraordinário 1237867 promovido por uma mãe solo de uma criança com deficiência, que trabalha 40 horas semanais em um hospital estadual.
Diante das dificuldades de conciliar os cuidados com a filha com a atividade profissional, pediu a redução da jornada de trabalho. Pedido que foi negado por falta de lei específica permitindo o exercício desse direito.
A decisão do Supremo tem efeitos de repercussão geral, ou seja, será adotada como modelo nos processos judiciais semelhantes. No entanto, como aponta a advogada da ação, Camilla Cavalcanti Varella Guimarães, isso não significa que os órgãos públicos municipais e estaduais irão conceder o benefício automaticamente aos pais e mães de pessoas com deficiência. De fato, até mesmo um eventual pedido administrativo pode ser negado, sendo necessário, então, que se recorra a uma ação judicial para garantir esse direito.
A decisão está fundamentada em um extenso voto do Ministro Ricardo Lewandowski, que tratou a matéria de forma aprofundada. Nele, o julgador relata a situação vivida pela mãe que buscou a Justiça e trata do autismo, suas características e a diversidade dos autista, o que leva à ideia de espectro, pois cada autista é diferente.
O magistrado conta que há uma busca, das famílias, por diagnósticos e tratamento multidisciplinares (fonoaudiólogos, médicos, psicólogos, terapeutas ocupacionais etc.). Porém, os serviços públicos são insuficientes para dar conta das necessidades dos autistas e suas famílias, o que é agravado pela formação falha dos profissionais de saúde e pela falta de investimento estatal.
Essa situação dificulta ou impede o acesso a diagnósticos e tratamentos, gerando sentimentos de impotência e angústia e ao que chama de “fenômeno da peregrinação por estabelecimentos de saúde ou educação”, o que acarreta mais dificuldades ao desenvolvimento do autismo e que acabam formando um quadro de “sobrecarga emocional, física e financeira, portanto os genitores ou cuidadores ficam sujeitos a condições crônicas de estresse.”
De forma bastante pertinente, a decisão mostra que a tarefa de cuidar, por questões socioculturais, é definida como de responsabilidade feminina, o que impacta as suas condições de vida, de trabalho e habitação dessas mulheres que arcam com os custos da falta de amparo social e ausência de políticas públicas.
Como diz a decisão, amparando-se nas reflexões de Ana Nunes, em seu “Cartas de Beirute”, a mãe se torna cuidadora em tempo integral do filho empurrada pelo dever moral de cuidar do dependente, já que a sociedade vê como sua tarefa “natural” e dada a ausência de opções proporcionadas pelo Estado. O resultado dessa equação é uma mulher vulnerabilizada e sem liberdade de escolha quanto à própria vida, o que é agravado no caso de mães solteiras que se tornam ainda mais vulneráveis economicamente e suscetíveis a níveis mais altos de pobreza.
Assim, as famílias de cuidadores de pessoas com deficiência encontram desafios e barreiras que vão muito além da responsabilidade pelo cuidar. A tendência à pobreza é agravada pela dificuldade em conciliar o cuidado necessário à vida familiar com a vida profissional. Carentes de políticas públicas adequadas, de compreensão da sociedade, são atingidas em sua dignidade.
A dignidade humana é que dá caráter constitucional à questão, levando à manifestação do STF. O direito à jornada reduzida é vista de forma mais ampla, como um instrumento para garantir a dignidade do servidor público que necessita desse benefício. É uma questão de Direitos Humanos e de proteção dos direitos das pessoas com deficiência.
O Ministro lembra que a ausência de lei municipal e estadual não pode ser desculpa para ferir esse bem tão precioso, que é a dignidade da pessoa humana. Segundo ele, ninguém deveria ter que reivindicar dignidade, ter que se esforçar para ser reconhecido pelos demais como uma pessoa digna, já que essa é uma qualidade inerente a cada ser humano.
A decisão se apoia na ideia que devemos tratar de forma diferente quem é diferente, que as diferenças entre os seres humanos não podem justificar a retirada de seus direitos e que a diversidade, mais do que reconhecida, deve ser aceita e vivida em todas as suas dimensões.