Por Frederico Rios Paula e Talden Farias
Um dos problemas mais recorrentes no licenciamento ambiental brasileiro, bem como nos requerimentos dos demais atos administrativos ambientais, tem sido a excessiva subjetividade na fixação de condicionantes, o que permite exigências descabidas e desproporcionais e tratamentos diferenciados para situações semelhantes. Foi com o intuito de enfrentar essa questão que no dia 14 de abril de 2022 a Procuradoria Federal Especializada junto ao ICMBio publicou a OJN nº 33/2022[3], a qual dispõe sobre os parâmetros jurídicos para a fixação das condicionantes em matéria ambiental.
É sabido que no processo de licenciamento ambiental, após analisar os impactos ambientais da atividade em questão, o órgão ambiental responsável deverá se decidir por uma das três opções: i) não conceder a licença ambiental, ii) conceder a licença da forma requerida e iii) conceder a licença desde que sejam cumpridos determinados direcionamentos da Administração Pública. Esse terceiro caso é o mais comum, pois a maior parte dos projetos apresentados sofre ajustes no sentido de ser obrigado a fazer ou a deixar de fazer alguma coisa. De acordo com Vanêsca Buzelato Prestes[4], tais direcionamentos devem constar na licença ambiental valendo como condição de validade desta, fato que por si só demonstra a importância da presente discussão[5].
Entretanto, não são raras as vezes em que os órgãos ambientais fazem exigências que não guardam qualquer relação com o objeto do processo administrativo sob análise, o que gera insegurança jurídica para os empreendedores. É por isso que a AGU incorporou a observância do inciso XI do art. 3° da Lei nº 13.874/2019 (Lei de Liberdade Econômica, LLE) no que toca à impossibilidade de exigência de medidas ou prestações mitigatórias ou compensatórias abusivas, descabidas ou desproporcionais:
“Art. 3º São direitos de toda pessoa, natural ou jurídica, essenciais para o desenvolvimento e o crescimento econômicos do País, observado o disposto no parágrafo único do art. 170 da Constituição Federal:
(…);
XI – não ser exigida medida ou prestação compensatória ou mitigatória abusiva, em sede de estudos de impacto ou outras liberações de atividade econômica no direito urbanístico, entendida como aquela que:
a) (VETADO);
b) requeira medida que já era planejada para execução antes da solicitação pelo particular, sem que a atividade econômica altere a demanda para execução da referida medida;
c) utilize-se do particular para realizar execuções que compensem impactos que existiriam independentemente do empreendimento ou da atividade econômica solicitada;
d) requeira a execução ou prestação de qualquer tipo para áreas ou situação além daquelas diretamente impactadas pela atividade econômica; ou
e) mostre-se sem razoabilidade ou desproporcional, inclusive utilizada como meio de coação ou intimidação; e”
O propósito da LLE é incentivar as atividades econômicas por meio da desburocratização do Estado brasileiro, de forma a implicar em menor dispêndio de dinheiro e de tempo por parte dos empreendedores. Cuida-se da tentativa de constituir uma ordem econômica onde a presença do Estado seja efetivamente a menor possível e o mercado possa ser desenvolver mais, tendo por inspiração os valores relacionados à economia liberal. Daí o estabelecimento de garantias e de diretrizes jurídicas de livre mercado por parte da citada declaração (art. 3º), a qual certamente constitui o núcleo essencial dessa norma.
De acordo com Francisco Zardo[6], o objetivo dessa norma é justamente promover as diversas atividades econômicas, investimentos e empreendimentos, em especial de infraestrutura, “pode ser conceituada como norma de sobredireito, isto é, lei sobre leis, visto que pretende orientar a interpretação e a aplicação de outras normas”, devendo orientar, portanto, toda a atuação estatal, inclusive em matéria ambiental. Nesse sentido, o artigo 1º, § 1º, da LLE, impõe que o “disposto nesta Lei será observado na aplicação e na interpretação do direito civil, empresarial, econômico, urbanístico e do trabalho nas relações jurídicas que se encontrem no seu âmbito de aplicação e na ordenação pública, inclusive sobre exercício das profissões, comércio, juntas comerciais, registros públicos, trânsito, transporte e proteção ao meio ambiente“.
Não faz sentido algum exigir medidas compensatórias não diretamente relacionadas aos impactos ambientais causados pela atividade poluidora, uma vez que é preciso configurar a existência do nexo de causalidade. Tais dispositivos convergem com a versão do Projeto de Lei Geral de Licenciamento Ambiental aprovada pela Câmara dos Deputados e atualmente em tramitação no Senado[7], que prevê a possibilidade de interposição de recurso administrativo no período de até 30 (trinta) dias para a revisão das condicionantes ambientais ou do seu prazo de cumprimento, além de estabelecer a impossibilidade de o empreendedor ficar responsável pelo desenvolvimento de políticas públicas (§§ 6º e 7º do art. 13).Trata-se de uma medida necessária, pois ajuda a evitar as exigências desproporcionais ou sem base legal, que por vezes não passam de verdadeiros disparates dos órgãos ambientais a que o empreendedor se submete para não comprometer o cronograma de investimentos ou para não perder o timing do negócio[8].
Eduardo Fortunato Bim também ensina que “qualquer condicionante que não tenha relação direta, ou seja, clara e imediata, com os impactos adversos do empreendimento ou atividade são ilegais porque cristalizam patente desvio de poder”. Segundo ele, “as condicionantes não podem suprir deficiências decorrentes da ausência estatal e nem substituir soluções específicas do direito positivo”[9]. Por outro lado, ressalta-se na OJN que sejam considerados os impactos cumulativos e sinérgicos, conceito que é tratado pela doutrina da seguinte forma:
“Importante neste passo precisar o conceito dos denominados impactos cumulativos e sinérgicos. Segundo Gonçalves, os efeitos sinérgicos dizem respeito à alteração significativa na dinâmica ambiental a partir da acumulação de impactos locais provocados por mais de um empreendimento. Essa alteração deve ser representativa de uma mudança em um mesmo aspecto econômico, social, ambiental ou institucional. No mesmo sentido, Milaré esclarece que a sinergia é o efeito ou força ou ação resultante da conjunção simultânea de dois ou mais fatores, de forma que o resultado é superior à ação dos fatores individualmente, sob as mesmas condições. Noutro passo, são cumulativos os impactos ou efeitos capazes de ensejarem alteração significativa na dinâmica ambiental a partir da acumulação de impactos locais, provocados por mais de um empreendimento.
Anote-se que, embora o EIA/RIMA devam desenvolver a análise dos impactos ambientais, através de identificação, previsão da magnitude e interpretação da importância dos prováveis impactos relevantes, discriminando suas propriedades cumulativas e sinérgicas (art. 6º, III, da Resolução CONAMA 1/86), tal análise dirá sempre respeito a determinado empreendimento, mas não sobre uma série deles, surgindo aqui a vital necessidade de aprimoramento dos procedimentos de licenciamento ambiental.
A falta de aprimoramento, indubitavelmente, fere o inolvidável princípio da legalidade, de forma prioritária e de outros princípios constitucionais, tais como, princípio do desenvolvimento sustentável, prevenção, precaução, eficiência, etc.
Importante ressaltar, que a Resolução CONAMA 237/97 (a qual não reproduz as expressões do artigo 6º, inciso III, da Resolução CONAMA 01/86) não revogou tal exigência, em especial, porque em matéria ambiental, sempre há de se aplicar à norma mais protetiva ou restritiva[10].”
No item 2, a OJN reforça o § 10 do artigo 3° da LLE no sentido de abrir a possibilidade de fixação de condicionantes ambientais mais amplas em caso de acordo ou termos de compromissos de ajustamentos de condutas resultantes de ilicitude, preservando os deveres anexos ao princípio do poluidor-pagador. Traz, ainda, a ressalva de que “não se considera abusiva a condicionante proposta pelo próprio empreendedor no projeto ou estudo ambiental e acolhida, motivadamente, pela Autarquia Ambiental”. Cumpre destacar a proibição ao comportamento por parte do empreendedor de impugnar em momento posterior condicionante por ele mesmo indicada/sugerida, sob pena de violação da boa-fé objetiva e da confiança legítima, estas últimas relacionadas à faceta subjetiva da segurança jurídica, princípio constitucional implícito e decorrência necessária do Estado de Direito[11].
Nos itens 3 a 6, a OJN indica a necessidade de as condicionantes apresentarem redação e motivação adequadas, de forma explícita, clara e congruente, e marco temporal de cumprimento e/ou avaliação periódica, procurando incorporar na cultura administrativa ambiental a indicação de consequências práticas e a utilização da proporcionalidade como técnica de fundamentação. Há, nesses itens, um claro reforço ao movimento em prol de maior segurança jurídica e qualidade das decisões administrativas a partir da alteração da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro — LINDB (Decreto-Lei n. 4.657, de 4 de setembro de 1942) pela Lei nº 13.655/2018[12].Vê-se que não só a motivação da condicionante ambiental deve ser formulada de forma explícita, clara e congruente, como também a sua própria redação. Cuida-se de uma orientação fundamental para que a condicionante constante no ato autorizativo e, possivelmente, incorporada na licença ambiental seja inteligível e de fácil compreensão para o empreendedor, os agentes públicos envolvidos e os órgãos de controle.
Outro ponto importante: como saber se houve descumprimento de condicionantes por parte de empreendedores ou responsáveis por atividades objeto de regulação ambiental se, muitas vezes, não há indicação pela autarquia ambiental de marco temporal para o seu cumprimento? Isso é relevante também para dar segurança ao agente autuante para fins de lavratura, ou não, de auto de infração, ou seja, interfere na avaliação da existência de infração administrativa ambiental prevista no artigo 66 do Decreto nº 6.514/2008, bem como de crime ambiental tipificado no art. 60 da Lei nº 9.605/1998. Por isso, essa OJN aponta a necessidade de que a condicionante ambiental apresente um marco temporal de cumprimento e/ou avaliação periódica, contemplando-se tanto um marco temporal específico, como, por exemplo, até a emissão da Licença de Operação (LO), quanto uma periodicidade, de apresentação de relatórios de monitoramento de determinado impacto. Em complemento, no item 5 foi incluída a exigência de a motivação da condicionante demostrar a forma de aferição de seu cumprimento, de forma a afastar a condicionante cujo cumprimento não possa ser atestado pela Administração Pública, o que evidencia o compromisso com a sua exequibilidade.
Por fim, nos itens 7 e 8, a OJN fomenta um diálogo de fontes normativas e institucional multisetorial e interfederativo por meio da interação/articulação entre órgãos ambientais e agências reguladoras setoriais e/ou com os administrados na condição de empreendedores ou responsáveis pelas atividades reguladas. A inspiração na Lei Geral das Agências Reguladoras (Lei nº 13.848/2019) é evidente, pois o objetivo principal é induzir um diálogo cooperativo no processo de fixação de condicionantes ambientais, ajudando a reduzir o déficit ou a assimetria informacional e a prevenir as consequências negativas dos vieses cognitivos de foco e comprometimento com a missão.
Em vista disso, a OJN nº 33/2022 dispõe sobre a impossibilidade de exigência de compensações abusivas, descabidas ou desproporcionais em matéria de Direito Ambiental, de forma que é preciso configurar a existência do nexo de causalidade, da proporcionalidade e da razoabilidade da exigência a ser feita. Cuida-se de um disciplinamento do art. 3º, XI e § 10° da LLE, que já estabeleceu tal vedação, na busca pela promoção da eficiência e da segurança jurídica. Contudo, a OJN trouxe as seguintes novidades) a necessidade de as condicionantes apresentarem redação e motivação adequadas, de forma explícita, clara e congruente, ii) a necessidade de a condicionante ambiental apresentar um marco temporal de cumprimento e/ou avaliação periódica e iii) a busca pelo diálogo de fontes normativas e institucional multisetorial e interfederativo por meio da interação/articulação. A despeito de ser uma regulamentação do ICMBIO, ela tende a ser observada pelos demais órgãos ambientais, em todos os níveis federativos, tanto em razão da falta de parâmetros sobre o tema quanto pela relevância desse órgão ambiental.
[3]A finalidade das OJNs (Orientações Jurídicas Normativas) é dar unidade à interpretação da legislação e os entendimentos jurídicos de maneira geral, integrando a atuação da Procuradoria Federal Especializada e dos seus órgãos de execução, tendo a sua aplicação obrigatória no âmbito da Administração Pública (https://www.gov.br/ibama/pt-br/acesso-a-informacao/institucional/orientacoes-juridicas-normativas).
[4] PRESTES, VanêscaBuzelato. Instrumentos legais e normativos de competência municipal em matéria ambiental. Fórum de Direito Urbano e Ambiental – FDUA, Belo Horizonte, v. 1, n. 1, p. 26-33, jan./fev. 2002, p. 30.
[5] O inciso II do art. 1º da Resolução n. 237/97 do CONAMA estabelece que “a licença ambiental é um ato administrativo pelo qual o órgão ambiental competente estabelece as condições, restrições e medidas de controle ambiental que deverão ser obedecidas pelo empreendedor, pessoa física ou jurídica, para localizar, instalar, ampliar e operar” a atividade pretendida.
[6]ZARDO, Francisco. A Lei de Liberdade Econômica e alguns reflexos sobre o direito administrativo. In: GOERGEN, Jerônimo (org). Liberdade econômica: o Brasil livre para crescer. Brasília: do organizador, 2020, p. 58.
[7]O documento pode ser acessado em <https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/grupos-de-trabalho/56a-legislatura/licenciamento-ambiental/documentos/outros-documentos/texto-base-4a-versao-apresentado-em-08-08.2019>.
[8] FARIAS, Talden. Análise dos efeitos da Lei de Liberdade Econômica no licenciamento ambiental. CONJUR. Disponível em https://www.conjur.com.br/2020-jan-25/ambiente-juridico-efeitos-leiliberdade-economica-licenciamento-ambiental.
[9] BIM, Eduardo Fortunato. Condicionantes sociais devem ter nexo com impactos ambientais. CONJUR. Disponível em https://www.conjur.com.br/2016-mai-11/eduardo-bim-condicionantes-nexo-impacto-ambiental.
[10] VALERA, Carlos Alberto. A avaliação ambiental integrada dos impactos cumulativos sinérgicos dos empreendimentos minerários. Disponível em http://www.gnmp.com.br/publicacao/147/a-avaliacao-ambiental-integrada-dos-impactoscumulativos-sinergicos-dos-empreendimentos-minerarios.
[11]O Enunciado n. 362 da IV Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal dispõe: “A vedação do comportamento contraditório (venire contra factumproprium) funda-se na proteção da confiança, tal como se extrai dos arts. 187 e 422 do Código Civil”.
[12] É o caso do art. 30, segundo o qual “As autoridades públicas devem atuar para aumentar a segurança jurídica na aplicação das normas, inclusive por meio de regulamentos, súmulas administrativas e respostas a consultas”.
Frederico Rios Paula é procurador federal da AGU (Advocacia-Geral da União), atuando na Procuradoria Federal Especializada junto ao Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (PFE/ICMBio) desde 2016. Mestrando em Direito Público e pós-graduado em Direito do Estado pela Uerj.
Talden Farias é advogado e professor da UFPB e da UFPE, doutor e pós-doutorando em Direito da Cidade pela Uerj, autor de publicações nas áreas de Direito Ambiental e Urbanístico e líder do Grupo de Pesquisa em Direito Ambiental e Cidades.