Diante da notícia de que um Tribunal Superior julgou inválida certa tributação pretendida pelo Fisco, é comum os cidadãos incomodados com o tamanho da carga tributária celebrarem. De outro lado, quando a mesma Corte defende a incidência de um tributo, reação semelhante ocorre entre aqueles que se preocupam com a manutenção das fontes de receitas estatais.
Mas será que é correto enxergar o fenômeno do contencioso tributário como uma dicotomia fisco-contribuinte? Bem analisadas as consequências de um precedente judicial, não parece desejável reduzir a sua análise à vitória de uma parte sobre a outra. A jurisdição tributária não é um jogo de soma zero, não cuidando somente da disputa entre dois jogadores: é essencial perceber como os efeitos indiretos de um julgado são sentidos por toda a sociedade, inclusive sobre os supostos vencedores.
Os debates sobre tributos no Poder Judiciário, limitados pelo princípio dispositivo, jamais envolvem a redução das despesas públicas. A implicação disso é que o acolhimento da tese de uma categoria de contribuinte, com a redução de uma receita pública, resulta, sempre, na transferência do ônus financeiro para outros contribuintes, pois ao Estado não é permitido deixar de pagar suas obrigações.
É essencial perceber como os efeitos indiretos de um julgado são sentidos por toda a sociedade, inclusive pelos supostos vencedores.
No limite, quando o governo é incapaz de aumentar outro imposto ou de cortar gastos, a queda da arrecadação é solucionada pela via do endividamento público e da inflação, a qual, na prática, não deixa de ser um “imposto” sobre a posse de dinheiro não investido.
Descrições reducionistas do embate jurídico entre cidadão e Estado ignoram o conflito de natureza política: a disputa entre diferentes agentes privados pela distribuição da carga tributária. Ora, sendo imperativo o financiamento do Estado por meio da tributação, nada mais natural que as forças políticas e econômicas busquem transferir o ônus da tributação para os demais concidadãos, furtando-se tanto quanto possível a tal encargo.
Daí se infere que, no contencioso judicial dos Tribunais Superiores, não se pode falar em um único “time dos contribuintes”. Mais apurado seria pensar numa disputa do time dos contribuintes sujeitos à tese tributária específica em julgamento contra o time de todos os demais contribuintes. Não por outra razão, reputa-se inadequada a classificação, comum entre advogados que atuam na área, segundo a qual os ministros julgadores seriam “pró-contribuintes” ou “fazendários”.
Sem dúvidas, existem julgadores que tendem a acatar as teses defendidas pela Fazenda Pública nos ditos “casos difíceis”, isto é, nos casos onde não há uma solução clara e previamente estabelecida em lei. Mas o ponto é que esses magistrados não podem ser rotulados como inimigos dos contribuintes. De fato, é possível vislumbrar que, em certos casos, decidindo a favor do Fisco, o tribunal estaria protegendo de serem chamadas a cobrir a perda arrecadatória todas as outras pessoas físicas e jurídicas dotadas de capacidade contributiva.
Vale refletir, inclusive, que às vezes nem mesmo a categoria de contribuintes que se sagrou vencedora na controvérsia pode comemorar tanto. Em que pese o ganho financeiro, é possível que a tese possua uma consequência deletéria sobre a previsibilidade da aplicação de outras normas tributárias, servindo de estímulo ao ajuizamento de demandas que apostam em uma loteria judiciária. No longo prazo, devem ser considerados os efeitos não só da falta de segurança jurídica, mas também do aumento dos custos de administração da justiça. Não é demais ressaltar que a litigiosidade excessiva encarece a estrutura do Poder Judiciário e das Procuradorias e isso, afinal, é pago pelos contribuintes.
A dicotomia Fisco-contribuinte ofusca o debate aprofundado sobre as consequências da formação dos precedentes em matéria tributária. A verdadeira luta nessa área se dá entre os defensores da previsibilidade da aplicação do direito e os seus detratores. No entanto, assim como quase nenhum economista admite publicamente tolerar a inflação alta, praticamente nenhum jurista assume gostar da imprevisibilidade do direito tributário. Isso acontece de modo silencioso, entre causídicos que se beneficiam da litigiosidade e entre julgadores que almejam maior discricionariedade e poder.
No contencioso tributário, não é bom comemorar vitórias a qualquer custo. Recomenda-se que o leitor atento às notícias de julgamentos relevantes de teses tributárias, antes de festejar ou lamentar, busque compreender a base legal da decisão e a coerência com outros precedentes, assim como, em casos de derrota da tese fiscal, que se indague sobre as possibilidades de recomposição da base arrecadatória ou de redução de despesas públicas.
Clóvis Monteiro Neto é procurador da Fazenda Nacional com atuação no Superior Tribunal de Justiça (STJ)
Este artigo reflete as opiniões do autor, e não do jornal Valor Econômico. O jornal não se responsabiliza e nem pode ser responsabilizado pelas informações acima ou por prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso dessas informações. |
Fonte : Valor Econômico