Por Manoel Tavares Netto e Renata de Paula
A recente e ainda tímida retomada do crescimento econômico do Brasil tem gerado um novo olhar a respeito de como empresas que viveram dificuldades nos últimos anos de recessão podem, definitivamente, criar um cenário adequado para a reestruturação de suas atividades e a aceleração do seu processo de desenvolvimento.
Juridicamente, o cenário de superação de crise tem reacendido debates em torno do instituto da recuperação judicial, previsto na Lei 11.101/2005, cuja pouca efetividade é deveras criticada, sendo raríssimos os casos em que o instituto, além do cumprimento do Plano de recuperação, atingiu, de fato, sua finalidade de permitir a manutenção da atividade produtiva, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores.
Entre os diversos problemas percebidos no sistema recuperacional, talvez a maior fratura exposta diga respeito à situação dos créditos fiscais, cujo ambiente de insegurança jurídica e imprevisibilidade tem se mostrado benéfico apenas aos sonegadores.
Hoje, é impossível prever de que maneira se resolverá o passivo fiscal de uma empresa em recuperação judicial, sendo certo que, caso não se consiga soerguer a empresa, as Fazendas Públicas não serão pagas, apesar do pagamento – ainda que parcial – dos credores privados, constante do Plano.
Em uma deturpação total da mens legis, é fácil constatar inúmeros casos em que o instituto é utilizado para realizar uma liquidação de ativos ao arrepio do concurso de credores do processo falimentar, alijando as Fazendas Públicas de quaisquer recebimentos. Não há filtros efetivos, seja para o deferimento do processamento da recuperação, seja para a sua ulterior concessão. Sob o pretexto da preservação da empresa, o benefício é estendido para todos, sejam eles sonegadores contumazes, empresas sem empregados e sem faturamento, empresas “lavadoras de dinheiro”, empresas inexistentes de fato etc. E assim, não raras vezes, o processo judicial se transforma num palco para fraudes.
Desde o advento da Lei 11.101/2005, além do parcelamento específico em âmbito federal para empresas em recuperação judicial, diversos parcelamentos especiais foram editados, porém são tímidas e pontuais as iniciativas de regularização do passivo fiscal, procedimento fomentado por decisões judiciais que, desprezando a literalidade da norma prevista no art. 57 da LRJF, ora dispensam a apresentação de certidões de regularidade, ora determinam a suspensão dos executivos fiscais.
A situação fere a logicidade do sistema e estimula a inadimplência fiscal, tanto com relação aos tributos correntes, quanto com relação ao passivo. É absurdo imaginar um juiz determinando que um credor privado específico não seja pago, porque o crédito dele é muito alto e inviabilizaria a empresa, mas que, de todo modo, este credor não deveria se preocupar, porque se a empresa se recuperar, ele poderá reaver o seu crédito. Pois é exatamente isso que acontece com as Fazendas Públicas na recuperação. Atribui-se à União, Estados e municípios o ônus de suportar a álea do processo recuperacional, sob o manto de um discurso ideológico, anêmico quanto à análise de fatos e dados.
Não se desconhece a importância da existência de um procedimento célere e eficaz que permita a superação de crises por empresas viáveis, mas é hora de rediscutir, com base empírica, o custo que essa orientação adotada em processos recuperacionais tem provocado ao erário.
Dados constantes da ADC 46/DF, de relatoria do ministro Celso de Mello, proposta pelo Distrito Federal, e na qual já foram formulados pedidos de ingresso como amicus curiae por mais de duas dezenas de Estados, demonstram que apenas as 20 maiores empresas devedoras do Estado de São Paulo em recuperação judicial devem ao Fisco estadual mais de R$ 5 bilhões. Já dados da PGFN demonstram que o passivo de recuperandas com a Fazenda Nacional se aproxima da casa dos R$ 30 bilhões.
Mas o problema não se restringe à dimensão do estoque, que pode ser justificada pelo fato de o país ter enfrentado,
recentemente, uma das maiores recessões de sua história. O problema é, em uma época de contingenciamento de gastos públicos, em que discute reforma da previdência, a crise dos Estados, da segurança, saúde e da educação, deixarmos que processos contra grandes sonegadores corram à revelia da Fazenda Pública.
Afirme-se, ainda, que 85,2% de todas empresas ativas estão regulares com a Fazenda Nacional, sendo falacioso argumentar que o pagamento dos tributos inviabiliza a empresa, seja porque, se concordarmos com esta afirmação, concluiríamos que os benefícios tributários concedidos à empresa recuperanda deveriam ser estendidos a todos os agentes de determinado segmento econômico, sob pena de se causar uma distorção de mercado; seja porque uma empresa que não consegue pagar seus tributos, além de não cumprir sua função social, revertendo recursos à sociedade, mostra-se uma empresa inviável.
A LRJF é positiva e tem um papel importantíssimo para o crescimento do país, mas a falta de transparência na condução dos processos recuperacionais, associada a reiterada falta de exigência de regularidade fiscal para as empresas recuperandas, criou um filão atrativo para sonegadores e criminosos, que usam o processo judicial de recuperação como uma moratória tributária e estratégia de blindagem patrimonial.
Manoel Tavares de Menezes Netto é associado à ANAFE Procurador da Fazenda Nacional lotado na Coordenação-Geral de Estratégias de Recuperação de Créditos (CGR) e representante da PGFN na Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro (Enccla).
Fonte: Valor Econômico