Para lidar com desastres, AGU deve viabilizar políticas públicas e aporte de recursos federais
A mística de crenças em face de realidades ásperas por vezes se confronta em uma expressão de incômodo que produz a negação, um constante ignorar da rispidez das interações do ser humano com o mundo que lhe envolve. A negação é ilustrada como mecanismo de defesa ou de resignação, em face da conjuntura que envolve como um todo os obstáculos da vida social. O complicador cultural se torna pior quando esta negação é inserida no plano jurídico, quando o Direito passa a ser uma expressão da negação do risco e as tragédias são apresentadas somente como choques de sofrimento em uma sociedade do espetáculo.
A sociedade brasileira habituou-se a visualizar nos desastres uma expressão de ato divino, Act of God, irresistível e incontornável. Secas, enchentes, deslizamentos, epidemias, pandemias, todas são usualmente captadas como externas ao Direito em sua origem. Caberiam ao ordenamento jurídico medidas reativas para mitigar ou sanar os danos dos desastres, sejam eles naturais, sejam eles de direta causalidade humana, afinal, os próprios desastres naturais são comumente derivados de intervenções humanas. Por outro lado, situações e medidas de contenção de riscos e reação em face de desastres são constantemente judicializadas, quando sua solução deveria passar pela atuação coordenada entre Poder Legislativo e Poder Executivo.
A dinâmica nacional brasileira alimenta a cultura do desastre, aqui entendida como complexo de práticas, perspectivas e compreensões subentendidas de mundo que contribuem para a negação dos riscos e para resignação dos danos como se fossem um evento implacável e inevitável no curso da vida social e individual. Há extintores de incêndio em edifícios privados e públicos sem que as pessoas saibam usá-los. Há saídas de incêndio lacradas.
Há mapas de risco geológico pouco lidos ou utilizados. Há planos de segurança de barragem por vezes pouco conhecidos ou testados. A negação está em cada caso de exposição ao risco, ao desastre. Superar a negação do risco e do desastre determina uma mudança no papel reativo e de resiliência previsto no ordenamento jurídico.
O ordenamento jurídico concentra suas atenções aos desastres sob o ponto de vista orçamentário, com créditos extraordinários direcionados para situações de calamidade pública e medidas reativas do Estado em face das ocorrências de danos pessoais e sociais.
A atribuição da Advocacia Pública é primordial no ponto. As análises legais e procedimentais para garantir tanto alocação quanto destinação e aplicação dos recursos em situações de desastres passam pela análise dos membros da Advocacia-Geral da União, na esfera federal. Embora as medidas reativas aos desastres não passem pelo Poder Judiciário, em regra, sua viabilização somente ocorre por uma atuação jurídica. Por de trás de toda gestão célere de aporte de recursos federais em situações de desastres está o papel ativo da AGU na viabilização da política pública reativa.
Mas esse papel reativo precisa se combinar com uma atuação sistematizada, planejada e organizada para impedir ou mitigar os riscos de desastres. Essa atividade é inerente às atribuições do Poder Legislativo e do Poder Executivo, embora esteja sendo constantemente atraída pelo Poder Judiciário, pelo Ministério Público e pelo Tribunal de Contas como se aquelas atribuições estivessem sujeitas aos seus nichos de competência. Fragmenta-se a cadeia de gestão e enfraquece-se o planejamento técnico, pois se deixa de analisar o sistema e se passa a focar pontualidades isoladas.
O quadro legal brasileiro é restrito à perspectiva de setorização dos desastres sob o ângulo de proteção e defesa civil (Lei n. 12.608/2012), algo incompatível com uma sociedade complexa de riscos plurais e sinérgicos, marcada pela cultura de negação.
O papel ativo da Advocacia-Geral da União nessa vertente preventiva de desastres se vê desafiado pelas lacunas normativas. A cultura de negação dos desastres desencadeia contradições insolvíveis, nas quais gestores públicos e mesmo legisladores aguardam dos órgãos de controle posições para seguirem, ao invés de assumirem seu protagonismo na gestão do risco de desastres.
A União Europeia conta com políticas públicas inerentes à gestão do risco, destacando-se o European Disaster Risk Management. A política pública é desenvolvida para guarnecer propriedades públicas e privadas, conter danos, preservar vidas e qualidades ambientais, afinal, o medo em si do desastre já compromete a economia e a sustentabilidade, que caminham juntas. As boas práticas de prevenção, gestão de dados, análises de riscos, dentre outras, passam pela incorporação interna de cada país, sob o crivo de órgãos jurídicos correspondentes à Advocacia Pública brasileira.
As tragédias, os desastres, os danos, os atingidos, todos eles se integram em uma dinâmica reflexiva que requer atuações sistêmicas e coordenadas em um diploma legal. Deve-se aplicar normativamente os horizontes dos ciclos de risco e de ferramentas jurídicas que tornem aptos os gestores públicos a atender aos reclamos da sociedade como um todo.
É necessário romper com a cultura do desastre, arraigada no viver brasileiro e naturalizada na expressão da negação do risco. Ao lado de operacionalizar as bases reativas na gestão orçamentária em face de desastres que ocorreram, é irrefreável a construção de um marco legal de desastres que tome a gestão do risco como uma política pública ampla e sob condução do Executivo e do Legislativo, com o suporte jurídico da Advocacia Pública.