A pedido do Diretor de Comunicação e Imprensa Leandro Garcia, a Assessoria de Comunicação da UNAFE enviou ao site Consultor Jurídico (Conjur) artigo do associado Artur Watt com tema: “Legislativo e Executivo deixam AGU à míngua”. O texto foi publicado nesta sexta-feira (15/04) e trata da falta de benefício e garantias para os advogados públicos federais.
Para os associados que quiserem enviar artigo para eventual publicação, a Assessoria de Comunicação se coloca à disposição por meio dos e-mails assessoria.comunicacao@unafe.org.br ou assessor.comunicacao@unafe.org.br
Veja o artigo na íntegra:
Imagine que você é um jogador de futebol. De um time vitorioso e de tradição, mas que vive em dificuldades financeiras. Você joga com amor à camisa, mas treina num campo de terra batida. Seu material de trabalho (bolas, uniforme, etc.) é emprestado e de segunda linha e você tem que pegar um ônibus para ir ao estádio em dia de jogo. Você recebe um salário suficiente para pagar suas contas, mas um outro time, que joga o mesmo campeonato, paga muito mais, além de dispor de uma estrutura similar à dos melhores times da Europa, com assistentes, centros de treinamento e transporte de luxo. E o que é pior: muitos companheiros, algumas vezes os mais promissores, acabam trocando de time por conta dessa disparidade, o que deixa seu time bastante desfalcado durante o campeonato, prejudicando ainda mais o desempenho.
É incrível, mas é exatamente isso que ocorre com a representação jurídica do Estado brasileiro. Há uma grande confusão na sociedade sobre o que faz realmente a figura do “procurador”. Tal confusão é alimentada por manchetes como “Procuradores embargam a construção da usina de Belo Monte” e “Procuradores garantem prosseguimento das obras de Belo Monte”; ou “Procuradores pedem o adiamento do Enem” e “Procuradoria consegue liminar para realização do Enem”. Que seres bipolares seriam esses que ingressam com ações dando “tiros para todo lado”?
Na verdade “procurador” significa simplesmente “representante”. Por isso qualquer um pode ter um procurador, basta assinar uma procuração. No mundo jurídico esse termo é utilizado genericamente para denominar o representante jurídico de uma instituição pública. Para mantermos a nossa metáfora, seriam os jogadores que defendem um time. Então para compreendermos o noticiário, precisamos dividi-los em dois times: o do Ministério Público da União (MPU), onde jogam os Procuradores da República, do Trabalho e Militar, e o da Advocacia-Geral da União (AGU), onde jogam os Procuradores Federais, da Fazenda Nacional, do Banco Central e os Advogados da União. Existem siglas para as divisões internas de cada um, além de seus correspondentes em cada Estado, com nomes distintos, mas o mais importante é essa divisão entre Ministério Público e Advocacia Pública.
Ao primeiro time, do Ministério Público, cabe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. Para isso podem entrar com ações cíveis e criminais contra qualquer pessoa, atuando como advogados desses interesses coletivos. Como tais atribuições nem sempre são simpáticas aos Poderes Executivo e Legislativo, imaginou-se que poderiam acabar prejudicados em sua estrutura e remuneração, e por isso lhes foram garantidos autonomia funcional, administrativa e financeira. Deste modo têm conseguido uma boa remuneração – a inicial é fixada sempre em 85,74% do salário do Ministro do STF, enquanto a final fica em 95% – e estrutura que inclui alguns dos prédios mais suntuosos do serviço público; assessores muito bem remunerados; transporte em carros pretos de bom padrão com motoristas próprios; verba diária para viagens a serviço cerca de quatro vezes maior que a dos demais servidores públicos, sem comprovação de gastos; verbas para cursos no exterior e etc. Além disso, têm vantagens como pagamentos adicionais por viverem em cidades afastadas, férias de dois meses por ano com pagamento de adicional e remuneração extra ao cobrirem férias de colegas.
Já à Advocacia Pública cabem as atividades de representação judicial e extrajudicial do Estado. Para isso, ingressam com ações para cobrança de valores desviados ilegalmente, impostos e multas não pagos, além de assumirem a defesa do Estado quando este é processado – e a indústria de processos contra o Estado cresce a cada ano. Nos casos em que efetivamente é comprovada alguma irregularidade, a Advocacia Pública pode mudar de posicionamento para reconhecer o problema e fazer um acordo para minimizar o prejuízo aos cofres públicos. Além disso, a Advocacia Pública tem uma atuação preventiva de assessoramento jurídico, emitindo pareceres sobre decisões administrativas e compras públicas que, quando seguidos à risca, evitam problemas futuros com a Justiça e os tribunais de contas. A conta do que é arrecadado e economizado sempre fica na casa das centenas de bilhões de reais, tendo chegado a um trilhão de reais em 2010, segundo as contas da AGU.
Cada um desses times tem seus próprios jogos, contra criminosos, sonegadores, corruptos e etc. Algumas vezes até jogam juntos, com o Ministério Público pedindo a prisão de um fraudador e a Advocacia Pública requerendo o leilão de bens para pagamento do rombo. Mas é quando o Ministério Público decide processar o próprio Estado que é jogado o clássico MPU x AGU. Como cada integrante do Ministério Público pode decidir o que pedir, às vezes são feitos pedidos como a suspensão de obras ou atividades estatais, tomada de providências com custos astronômicos, ou até a alteração de políticas públicas, tudo conforme entendimento pessoal do membro do Ministério Público. Em algumas oportunidades o pedido tem fundamento e o governo precisa mudar sua atuação, mas isso é coisa do jogo democrático. Já em outros casos o resultado do julgamento final de tais ações pela Justiça demonstra que os pedidos não tinham fundamentos consistentes. Só que muitas vezes são dadas liminares para atendimento temporário do pedido, com prejuízos irremediáveis, e aí entra em campo a Advocacia Pública, inclusive através de “tropas de choque” como a que foi criada para garantir o andamento das obras da Copa do Mundo, do PAC e etc.
Apesar de tudo isso, a Advocacia Pública federal não tem nenhuma das benesses listadas acima. Pelo contrário, seus integrantes trabalham em instalações que na maioria dos casos beiram ao abandono (com raras exceções, como em Brasília); executam as tarefas administrativas praticamente sem assessoria – ou com alguns servidores cedidos de outros órgãos –; utilizam o próprio carro, táxi ou ônibus para ir ao fórum; e ainda convivem com o fato de que os Procuradores do Ministério Público recebem salário inicial exatamente 53% maior. Para piorar, tramita no Congresso a lei de revisão do teto de vencimentos dos ministros do STF que poderá elevar essa diferença para 76%, caso aprovada. Com as vantagens listadas, será possível dizer que um procurador ganha em média o dobro de outro procurador, dependendo do time em que jogue. Aliás, atualmente até mesmo os principais assessores dos procuradores do MPU (chamados de chefes de gabinete) chegam a ganhar mais que um procurador da AGU, apesar de nem entrarem em campo.
Garantias e benefícios equivalentes para a Advocacia Pública não foram previstas detalhadamente na Constituição por dois motivos. Em primeiro lugar a AGU, ao contrário do MPU, não estava representada na Assembleia Constituinte por só ter sido criada pela própria Constituição. Mas o principal motivo é que não passou pela cabeça do constituinte originário que fossem necessárias tantas garantias, já que ofende a lógica administrativa mais elementar imaginar que os Poderes Executivo e Legislativo pudessem deixar à míngua justamente quem lhes defende, orienta e assegura a arrecadação que permite a execução de políticas públicas, gastos orçamentários e arrecadação mais justa e eficiente dos impostos.
A regra é clara: quando previu a criação da AGU, a Constituição permitiu que os procuradores da época, que antes jogavam em todas as posições, poderiam escolher o time que passariam a defender, numa prova clara de que nunca se admitiria que os defensores da nova instituição pudessem receber praticamente metade do que ganham os que ficaram na antiga.
A perpetuação desse desequilíbrio, com uma disparidade de armas tão grande, pode acabar transformando a Justiça numa segunda instância de governo, onde membros independentes do Ministério Público e setores organizados da sociedade fazem prevalecer suas escolhas políticas e orçamentárias sobre as do governo eleito. A tendência de levar tais questões ao Poder Judiciário tem até nome: ativismo judicial. Não seria uma tendência ruim em si mesma, se o Estado mantivesse o seu próprio time de ponta para garantir um jogo justo e democrático. Mas do jeito que está, caminha-se em direção à completa transferência do poder político e do orçamento público para as barras dos tribunais, com consequências inimagináveis para a separação harmônica entre os Poderes.
Até mesmo as administrações quase amadoras de alguns clubes do futebol brasileiro já conhecem uma lição básica: é melhor cortar a luz do vestiário do que mexer na remuneração de seus advogados, pois sem eles qualquer economia vai por água abaixo na Justiça e a casa cai. Vários governadores e Assembleias Legislativas também já perceberam isso: o Distrito Federal, o Rio de Janeiro e a maioria dos estados brasileiros corrigiram o problema reforçando suas respectivas Advocacias Públicas. O mesmo ocorre nos países estrangeiros em que essas funções são separadas. Na esfera federal, o então presidente Lula prometeu corrigir essa distorção em 2006 – está gravado! – mas as circunstâncias políticas não foram favoráveis. Em 2007, o então Advogado-Geral da União, José Tóffoli, fez um projeto para regulamentar ao menos a distribuição de honorários, verba adicional paga por quem perde a ação, e que por lei pertence aos advogados que ganharam – mas isso também não deu certo.
É uma solução definitiva para esses problemas que está sendo buscada pelos integrantes da Advocacia Pública e da Defensoria Pública, outro time que necessita de reforços. Não se busca com isso replicar a opulência e as benesses desmedidas, mas apenas conquistar os direitos e as condições de trabalho que tornem o jogo mais limpo. Não custa caro, dada a dimensão do orçamento federal. Pode ser feito de forma gradual, utilizando parte das verbas que serviriam para aumentar a distorção. Aliás, apostaria com qualquer um que os resultados financeiros colhidos compensariam o investimento já no primeiro ano, liberando recursos para as políticas públicas essenciais. Basta alguém que entende de orçamento fazer as contas: se a atuação da Advocacia Pública, na situação em que está, alcança vitórias importantes e centenas de bilhões de reais arrecadados e economizados, em benefício dos contribuintes, qual o valor de uma Advocacia Pública melhor aparelhada, melhor remunerada, mais eficiente?
Com os fatores extracampo solucionados, as questões mais importantes para a sociedade brasileira poderão ser resolvidas dentro das quatro linhas. E para entender melhor o noticiário político, quando ler que um procurador tomou essa ou aquela medida, pergunte sempre: que time é o seu?
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