O site especializado Consultor Jurídico – Conjur publicou, no último domingo (8), artigo intitulado “AGU deve se legitimar institucionalmente efetivando seus princípios”, de autoria do Advogado da União e Mestre em Direito e associado da ANAFE Rommel Macedo.
Veja o artigo na íntegra:
AGU deve se legitimar institucionalmente efetivando seus princípios
Ao tratar da organização dos poderes, a Constituição Federal de 1988 prevê a existência das Funções Essenciais à Justiça, quais sejam: o Ministério Público, a Advocacia Pública, a Defensoria Pública e a Advocacia. Relativamente à Advocacia Pública, o texto constitucional dispõe sobre: a Advocacia-Geral da União (art. 131) e os Procuradores dos Estados e do Distrito Federal (art. 132).
Segundo o artigo 131 da Constituição Federal, a Advocacia-Geral da União “é a instituição que, diretamente ou através de órgão vinculado, representa a União, judicial e extrajudicialmente, cabendo-lhe, nos termos da lei complementar que dispuser sobre sua organização e funcionamento, as atividades de consultoria e assessoramento jurídico do Poder Executivo”.
Diversamente do tratamento conferido ao Ministério Público (art. 127, § 1º) e à Defensoria Pública (art. 134, § 4º), a Constituição de 1988 não elenca os princípios aplicáveis especificamente à Advocacia Pública. Isso, porém, não impede a adoção da doutrina de Diogo de Figueiredo Moreira Neto, o qual bem elucida os “princípios dessumidos do ordenamento constitucional”, interpretando as Funções Essenciais à Justiça como um todo (sem “qualquer distinção valorativa”).
Assim, podem ser extraídos os seguintes princípios, que se aplicam a todas as referidas funções constitucionais: “essencialidade, institucionalidade, igualdade, unidade, organicidade unipessoal, independência funcional, inviolabilidade, autonomia administrativa e autonomia de impulso”.
É oportuno esclarecer que, relativamente à expressão “princípio”, este artigo emprega a acepção de Paulo Bonavides, conceituando-o como a “norma das normas”, a “fonte das fontes”. Evidentemente, não se insere no objeto deste texto examinar toda a polissemia do termo “princípio”, o qual comporta variadas significações jurídicas. Destarte, também não cabe aqui comentar cada um dos princípios divisados pela doutrina especializada, ao dissertar sobre o tratamento constitucional da Advocacia Pública.
Embora possam ser extraídos de uma interpretação sistemática do texto constitucional, é inegável a relevância de se positivarem os princípios concernentes à Advocacia Pública, prevendo-os expressamente em instrumentos legais. Portanto, o escopo deste artigo é justamente demonstrar a importância dessa positivação de princípios, especialmente em relação à Advocacia-Geral da União.
Trata-se de uma reflexão muito oportuna no atual cenário histórico, em que se inicia a tramitação do Projeto de Lei Complementar 337/2017, recentemente encaminhado pelo Poder Executivo Federal ao Congresso Nacional, com o escopo de alterar a Lei Orgânica da AGU (Lei Complementar 73, de 1993).
Traçadas essas premissas, frise-se que a positivação de princípios é recomendável para bem nortear a atuação de órgãos e agentes públicos. Exemplificativamente, cite-se o artigo 2º da Lei 9.784, de 1999, que regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal, preconizando que esta “obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência”.
Por conseguinte, o ideal seria que a Lei Orgânica da Advocacia-Geral da União positivasse os princípios que regem sua atuação. Ocorre que a Lei Complementar 73, de 1993, não expressa os referidos princípios, numa omissão mantida por outros diplomas legais que posteriormente trataram da AGU, a exemplo da Lei 9.028, de 1995. Apenas recentemente, com o advento da Lei n º 13.327, de 2016, pôde-se verificar um avanço nessa seara, embora ainda tímido, com a redação do art. 37, § 1º:
“No exercício de suas atribuições, os ocupantes dos cargos de que trata este Capítulo buscarão garantir a segurança jurídica das ações governamentais e das políticas públicas do Estado, zelando pelo interesse público e respeitando a uniformidade institucional da atuação.”
Este preceito legal dispõe sobre a atuação dos ocupantes dos cargos de Advogado da União, Procurador da Fazenda Nacional, Procurador Federal, Procurador do Banco Central do Brasil e integrantes dos quadros suplementares em extinção da Advocacia-Geral da União. Pela leitura desse comando normativo, é possível extrair princípios como “segurança jurídica das ações governamentais e das políticas públicas do Estado”, “interesse público” e “uniformidade institucional da atuação”, cujo real alcance prático poderá ser dimensionado ao longo do tempo, inclusive em regulamentações internas da AGU.
Por óbvio, os princípios observados no referido art. 37, § 1º, implicam legítimas limitações à atuação dos Advogados Públicos Federais. No entanto, deveria haver um contrapeso por parte de outros princípios, que assegurassem garantias funcionais para esses agentes públicos e para a própria Advocacia-Geral da União, a exemplo da independência técnica e da autonomia institucional. Eis uma lacuna que ainda não foi suprida, inclusive pelo recente Projeto de Lei Complementar 337/2017, que nada prevê em relação aos princípios institucionais da Advocacia Pública.
Esse cenário normativo, decerto, é influenciado por um já tradicional debate ideológico, permeado pela contraposição entre: Advocacia de Estado e Advocacia de Governo.
Por um lado, há setores considerando que o papel da Advocacia Pública seria defender o Governo (e até mesmo o Governante), do que decorreria uma enorme fluidez (para não dizer escassez) de princípios. Com efeito, se os Governos são temporários e cambiantes, as instituições responsáveis por defendê-los não poderiam ser pautadas por princípios definidos. Isso porque, como todo princípio contém uma carga axiológica e como os valores poderiam ter implicações político-ideológicas, não seria recomendável positivar os princípios vetores da Advocacia Pública.
Ao longo dos anos, esse tipo de raciocínio foi adotado por alguns dos sucessivos ocupantes de cargos diretivos da Advocacia-Geral da União. Isso, contudo, nem sempre ocorreu de modo expresso, vez que determinados gestores sequer conseguiram (ou tiveram a coragem de) verbalizar algum tipo de concepção teórica acerca da Advocacia Pública. Afinal, como bem observa Theodore Dalrymple, há pessoas que não estão dispostas “a arriscar muita coisa em nome de princípios […]. Por que se preocupar quando a alternativa é uma vida fácil, vivida em alta estima perante os outros? Hipocrisia e dissimulação mantêm fortes os sistemas sociais; é a honestidade intelectual que os destrói”.
Por outro lado, diversos autores enxergam na Advocacia Pública uma verdadeira função de Estado, patenteada por seu tratamento constitucional como “Função Essencial à Justiça”. Dentre esses juristas, certamente se destaca o já mencionado Diogo de Figueiredo Moreira Neto, com sua vasta contribuição doutrinária ao estudo da Advocacia de Estado.
Em suma, os que defendem que a Advocacia-Geral da União exerce uma Advocacia de Estado se preocupam em delinear os princípios que a norteiam. Com efeito, são esses princípios que fazem da AGU uma verdadeira instituição, ou seja, um componente da sociedade cuja duração não depende da vontade subjetiva de indivíduos determinados, de modo que, por mais que o legislador ou qualquer outra pessoa tente extingui-la, tal esforço restará infrutífero (empregando-se aqui a clássica acepção de Maurice Hauriou).
Mas por que toda essa preocupação com os princípios que norteiam a Advocacia-Geral da União? Várias respostas estritamente normativas poderiam ser conferidas a esse questionamento, mas é preferível trazer a lume uma explicação mais ontológica, que se aplique não apenas à AGU como também a toda e qualquer instituição.
Em seu magistral estudo sobre a história da humanidade, Yuval Noah Harari salienta que: “toda cooperação humana em grande escala – seja um Estado moderno, uma igreja medieval, uma cidade antiga ou uma tribo arcaica – se baseia em mitos partilhados que só existem na imaginação coletiva das pessoas”.
A expressão “mito” não é aqui empregada no sentido de uma mentira, mas sim de uma realidade imaginada. Ou seja, faz-se referência à imensa capacidade criativa dos seres humanos, que os torna verdadeiros “mestres da criação”, gestando conceitos tão diversos como “nações, companhias de responsabilidade limitada e direitos humanos”.
É justamente esse processo de criação e de compartilhamento de ideias que ensejou profundas transformações ao longo da história. Isso porque “a capacidade de criar uma realidade imaginada com palavras possibilita que um grande número de estranhos coopere de maneira eficaz”. Assim, por exemplo, “dois advogados que nunca se conheceram podem unir esforços para defender um completo estranho porque acreditam na existência de leis, justiça e direitos humanos”.
Essa explanação é fundamental para uma compreensão do próprio Direito (como ciência humana). Nessa seara, pode-se citar a concepção tridimensional de Miguel Reale, ao ressaltar que: “Direito é a concretização da ideia de justiça na pluridiversidade de seu dever histórico, tendo a pessoa como fonte de todos os valores. […] Se analisarmos […] noções de Direito, veremos que cada uma delas obedece, respectivamente, a uma perspectiva do fato (‘realização ordenada do bem comum’), da norma (‘ordenação bilateral-atributiva de fatos segundo valores’) ou do valor (‘concretização da ideia de justiça’)” É justamente essa perspectiva axiológica dos princípios jurídicos (calcados em valores) que mais importa a este artigo.
Partindo dessas considerações, pode-se concluir quão vulnerável (e, portanto, efêmera) se mostrará uma instituição cujos princípios não estejam definidos. Como bem afirma Henry Kissinger, “o equilíbrio funciona melhor escorado num acordo com base em valores comuns”. Desse modo, como esperar coesão por parte de agentes públicos que atuam num mesmo órgão, mas sem princípios expressos que guiem sua atuação coletiva? Como esperar que a sociedade reconheça uma instituição cujos membros somente se preocupam com suas atividades individuais, sem compartilhar valores que permitam planejar e efetivar metas organizacionais?
Decerto, o que garante a perenidade de uma instituição não é apenas estar prevista na Constituição, especialmente em países cuja história demonstra pouca estabilidade política (como é o caso do Brasil republicano, com seus sucessivos textos constitucionais). Em verdade, um órgão público é erigido ao status de verdadeira instituição com base nos princípios que fundamentam sua atuação.
Foram justamente essas reflexões que levaram, no ano de 2016, à publicação da obra coletiva “Advocacia Pública Federal: afirmação como Função Essencial à Justiça”. Neste livro, membros da Advocacia-Geral da União dissertam sobre princípios como “autonomia institucional” e “independência técnica”, harmonizando-os com uma inovadora visão sobre Administração Pública.
Tais princípios são interpretados não apenas à luz da Constituição Federal como também dos contemporâneos anseios da sociedade brasileira (que demanda uma atuação estatal proba e eficiente). Decerto, essas ideias podem contribuir para aperfeiçoar a normatização aplicável à AGU, inclusive na tramitação do recente Projeto de Lei Complementar 337/2017, no âmbito do Congresso Nacional.
Decorridos quase 30 anos desde a promulgação da Constituição de 1988, este é o grande desafio da Advocacia-Geral da União e de outras instituições que exercem Advocacia Pública: não apenas compreender os respectivos princípios, mas também conferir-lhes efetividade, garantindo sua contínua legitimação perante a sociedade brasileira. Trata-se de um desafio imenso, especialmente considerando todas as incertezas políticas, econômicas e sociais que pairam sobre este País.
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