Os primeiros vinte anos deste século nem terminaram e já indicam alguns dos principais desafios da Advocacia Pública. A defesa de uma atuação legítima do Estado, a prevenção de ilegalidades (em sentido amplo) e a promoção de eficiência e de sustentabilidade às políticas públicas, enquanto tarefas centrais da Advocacia Pública, tornaram-se mais complexas, como quase tudo em volta. Globalização, inteligência artificial, demandas de massa, escândalos de corrupção envolvendo o Estado, novas estruturas, novas parcerias e novas formas de fazer da Administração Pública, reflexões sobre efetividade constitucional e democracia nesses 30 anos da Carta de 1988: dinâmicas nos cenários internacionais, nacionais, estaduais e municipais que provocam as competências das procuradorias públicas a agir.
A globalização no movimento de pessoas, de mercadorias, de comunicações, de capitais e, inclusive, de normas jurídicas, especialmente intensificada depois da internet, reformulou todas as teorias e as práticas dos Estados-nações. Nesta altura, a doutrina sociopolítica e a diplomacia que, do século XVII até hoje, rumavam numa direção (a soberania de cada território), compreenderam a inviabilidade de soluções isoladas (seria necessária uma soberania em rede). Cada país influencia e, mesmo, depende, de seus congêneres para enfrentar diversos problemas. O terrorismo, as guerras, as doenças pandêmicas, as catástrofes ambientais, a imigração, as crises econômicas são todos riscos mundiais. A Advocacia Pública, como se percebe na situação dramática dos venezuelanos em Roraima e nas demandas por direitos sociais, na sequência de tempos de austeridade financeira, deve se preparar a essa dimensão de acontecimentos.
Talvez, a partir de sistemas de computação de dados que utilizem inteligência artificial seja possível a substituição de parte das rotinas de um Advogado Público por softwares que possam criar relatórios, analisar processos e minutar petições, aferir estatísticas, gerenciar sistemas e incrementar atividades de equipe. Desse modo, haveria mais tempo e mais disposição ao profissional humano para atuar nos casos difíceis (como aqueles panoramas geopolíticos globais) e naquilo que necessite maior reflexão e trabalho preventivo, como operações e cobranças antifraude, anticorrupção e anti-sonegação, que resultam em economia aos cofres públicos.
Aliás, a quantidade de afazeres o volume intenso de diligências que o Advogado Público cumpre são algumas das facetas preocupantes quando se refletem sobre demandas de massa. Os grandes litigantes, de regra, são entidades ligadas ao Estado e, portanto, representadas por Advogados Públicos. As demandas apresentadas por milhões de cidadãos em busca de dignificação (implementação de direitos sociais e trabalhistas, quitação de dívidas, recebimento de créditos frente a órgãos públicos etc.) precisam receber tratamento diferenciado. O Poder Judiciário, por mais que se amplie, dificilmente terá capacidade operacional para dar vazão a tantas ações.
Não à toa, a Constituição de 1988 criou um sistema de Justiça, um conjunto de instituições cuja missão é espalhar e concretizar a Justiça, enquanto valor ético, enquanto ideal político e enquanto projeto econômico, nomeadas Funções Essenciais à Justiça, que, de acordo com os artigos 127 a 135 da Carta Magna, seriam o Ministério Público, a Advocacia Pública, a Defensoria Pública e a Advocacia Privada. Estratégias desses órgãos que previnam conflitos, que acelerem e uniformizem a resolução de disputas e que diminuam o número de recursos apresentados aos tribunais são urgentes, a fim de que os temas essenciais ao debate brasileiro possam ser pautados, desassoreando as Cortes.
E um desses temas que, infelizmente (por um lado) e felizmente (por outro), mobiliza o debate nacional é o da corrupção. Embora o fenômeno, por óbvio, não se restrinja a atividades estatais, parece inegável que o Estado é ator-chave, seja no cometimento de atos de corrupção por seus agentes, seja na averiguação, na punição e na dissuasão desses crimes. A Advocacia Pública, como se nota com a Operação Lava-Jato e diversas outras apurações, junto às Corregedorias, às Polícias, aos Tribunais de Contas, às Controladorias e, no limite, junto a Organismos Internacionais, é um dos mecanismos de controle frente a práticas suspeitas, abusivas ou ilícitas.
O papel exercido pelo Advogado Público em relação ao administrador, ao gestor ou ao servidor busca garantir legalidade, constitucionalidade e legitimidade aos contratos, aos orçamentos e às obras públicas, por exemplo. É preciso estar à altura desse desafio, para que a sociedade compreenda a importância de uma Advocacia forte, independente e consciente de seu ofício: proteger o erário, cumprindo os princípios do artigo 37 da Constituição.
Essa proteção, no entanto, não se confunde com impedir atitudes ousadas dos servidores ou dos gestores públicos. A inovação, o empreendedorismo público e as novas maneiras de solucionar velhos dilemas nunca podem ser suspeitos, por si, nem devem gerar receio naqueles motivados a alterar realidades testemunhadas na maioria dos municípios e dos estados federados brasileiros. A Administração Pública contemporânea deve fazer mais com menos recursos e, para isso, há um espaço imenso de criatividade – sem nenhum arranhão às leis e às diretrizes de políticas públicas.
A responsabilidade transversal da Advocacia Pública, de defender o Judiciário, o Ministério Público, a Defensoria Pública, o Legislativo, o Executivo ou as Forças Armadas, quando acionados por qualquer cidadão, é uma das fortes garantias de perenidade institucional. Mas essa mútua influência positiva entre os Poderes Constituídos – o Estado – e seus Advogados deve visar sempre a uma melhoria da vida daqueles que formam o Poder Constituinte – cada uma e cada um dos brasileiros (por nascimento ou por escolha). As próximas décadas deste século (oxalá!) demonstrarão que o impacto dos novos desafios criou novas Advocacias Públicas. Ainda mais preparadas e ainda mais efetivas, em prol da Constituição e da sociedade.
JOSÉ PÉRICLES PEREIRA DE SOUSA
Filiado à Associação Nacional dos Advogados Públicos Federais (ANAFE), é procurador da Fazenda Nacional, coordenador da PGFN junto ao STJ, ao TST e à TNU. Doutorando em Direito e Sociologia pela Universidade de Coimbra, mestre em Filosofia Política pela Universidade de Lisboa e mestre em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Ceará.
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