Lademir Gomes da Rocha
Presidente da ANAFE
Marco Aurelio Mellucci e Figueiredo
Representante do Distrito Federal no Conselho de Representantes da ANAFE
1. Embora seja mais conhecido pela fortuna que acumulou ao longo de sua atividade como investidor/especulador financeiro, George Soros é também um teórico nada condescendente das finanças contemporâneas.
2. Seus insights e proposições partem da identificação e diferenciação da dupla natureza ou função das abordagens teóricas que buscam compreender a economia, as finanças e as instituições: a função descritiva ou analítica, que busca realizar, na medida do possível, o ideal de objetividade, e a sua dimensão normativa ou, em suas palavras, “reflexiva”, que indica as escolhas ou as preferências do analista, que, ao compreender a realidade tende a tentar conformá-la a suas preferências. Em síntese, mais que meras câmeras, que buscam retratar a realidade como ela objetivamente se apresenta, as teorias são motores de projetos, preferências e interesses[1].
3. A análise ou “balanço” que nos propomos a realizar da Portaria Normativa AGU nº 03, de 28 de janeiro de 2021, que regulamenta o teletrabalho dos Advogados da União e dos Procuradores Federais, assume essa dupla perspectiva, buscando compor um quadro analítico e reflexivo da norma que deve balizar as escolhas gerenciais que ela abriga.
4. Antes da análise reflexiva, cabe, porém, estabelecer o contexto em que ela é realizada, marcado pela tempestade de mudanças provocada por uma profunda crise econômica e sanitária.
5. Em virtude da pandemia, tanto o setor público, como o setor privado da economia passaram a adotar o trabalho remoto em larga escala, conduzindo à experimentação e à disseminação de formas de gestão do trabalho que já vinham sendo adotadas por diversas organizações e conglomerados empresariais. Em estudo publicado em outubro de 2020, o Fórum Econômico Mundial escrutinou as principais práticas de recursos humanos que essas organizações e conglomerados vinham utilizando para enfrentar a crise causada pela Covid-19[1]. Por seus resultados positivos, essas práticas têm servido de base para uma agenda de mudanças nas relações de trabalho visando o per[iodo pós-pandemia. O estudo revela que:
a) 84% das entidades participantes relataram o uso acelerado de ferramentas de telecomunicação;
b) 83% ampliaram o teletrabalho;
c) 50% incrementaram a automatização de tarefas rotineiras;
d) 42% ampliaram a digitalização da educação corporativa;
e) 35% implementação de programas de educação para redirecionamento de carreiras;
f) 34% flexibilização a organização do trabalho, mediante a constituição de equipes ad-hoc e adoção de processos de gestão ágil; e
g) 30% realizaram realocações temporárias da força de trabalho para diferentes tarefas (gestão por projetos e por entregas contratadas).
6. Nesse contexto, a adoção pelos órgãos da Advocacia Pública Federal de mecanismos como o teletrabalho, a formação de equipes desterritorializadas e o uso rotineiro e massivo de ambientes virtuais para a gestão e a realização do trabalho importam no alinhamento com as melhores práticas de gestão, que, embora aceleradas pela crise sanitária, não se limitam a ser meras respostas a ela, mas avanços adotados com pretensão de permanência.
7. É com essa visão e considerando esse contexto que passamos a analisar “reflexivamente” a Portaria Normativa AGU nº 03, de 28 de janeiro de 2021, que consagra avanços importantes – é importante que reconheça – mas contém aspectos que merecem crítica. O foco nas críticas não significa ignorar os avanços, mas uma escolha determinada pela necessidade de pontuar sugestões de aperfeiçoamento.
8. Mais do que objetivos (art. 2º), o aumento da eficiência e a melhoria dos resultados institucionais, e a busca da sustentabilidade orçamentária e financeira da Advocacia-Geral da União são subprodutos mensuráveis do regime de teletrabalho adotado em face da crise sanitária[1]. Algo que se constata mirando retrospectivamente o caminho já trilhado, e não mera especulação sobre resultados projetados. Há, por outro lado, um hiato no que se refere à valorização das pessoas e à promoção da qualidade de vida, indicando a necessidade da realização de um diagnóstico psicossocial de seus membros, a fim de compreender de que maneira o teletrabalho e, sobretudo, o aumento extraordinário do volume de trabalho, afetam a saúde dos advogados públicos federais.
9. Por seus resultados objetivamente mensuráveis, seria recomendável é que a Portaria Normativa AGU nº 03, de 2021, tivesse sido mais ousada no que se refere à adoção do teletrabalho, à semelhança do que ocorre no âmbito da PGFN[1], erigindo-o a um regime geral, pontuado por exceções objetivamente justificáveis. Se o teletrabalho já retrata (mais do que simplesmente projeta) ganhos de eficiência (racionalização de meios) e eficácia (realização mais intensa e consiste dos fins), somos forçados a reconhecer que esses ganhos irão produzir efeitos positivos sobre a sustentabilidade orçamentária e financeira da Advocacia-Geral da União, como de fato produziram até o presente momento.
10. A norma apresenta uma característica limitadora, herdada da Portaria nº 312, de 16 de outubro de 2018, de ser uma norma meramente autorizativa ou programática (em outras palavras, não auto-aplicável), que submete a adoção do regime de teletrabalho à vaga noção da conveniência do serviço, deixando de estabelecer a implementação do trabalho como um modelo geral, sujeito a pontuais e objetivamente definidas situações nas quais o trabalho presencial se faz necessário. Trata-se, portanto, de uma manifestação do fenômeno da “dependência da trajetória”, segundo o qual o peso de soluções institucionais criados para resolver problemas pretérito continua a ser determinante para escolhas presentes, apesar de sua inadequação para resolver os problemas atuais de maneira eficaz, eficiente e equitativa.
11. Com efeito, sob égide da Portaria nº 312, de 2018, PGF e PGU limitaram-se a instituir equipes desterritorializadas para temas específicos e restritos ou a implementar a regionalização/estadualização, deixando ao desabrigo da formalização do teletrabalho a maioria dos procuradores federais e advogados da União. A CGU tem regulamentação sobre o tema – Portaria nº 45, de 07/12/16 – que tampouco é cogente, sendo que que alguns órgãos, como determinadas CONJURs, sequer regulamentaram ou implementaram regime de teletrabalho.
12. Ademais, a escolha pelo modelo de aplicação discricionária do regime de teletrabalho acarreta injustificada quebra de isonomia entre as uqatro carreiras da AGU (deixamos de lado o bizantinismo de se ter não somente quatro carreiras, mas também quatro estruturas e regimes diferenciados de trabalho). Comparemos a Portaria Normativa AGU nº 3/21 com a paradigmática Portaria PGFN nº 1069/17 (atualizada pela Portaria PGFN nº 19.759/20):
13. Conclui-se daí que, embora tenha havido uma aproximação ao modelo da PGFN, há, ainda, diferenças importantes no modo como o teletrabalho é disciplinado na PGF, na PGU e na CGU, sem que haja motivos que expliquem a persistente diferenciação, a não ser uma injustificável “dependência de trajetória”, uma vez que o teletrabalho deu mostras de ser um regime eficaz e eficiente de gestão das atividades dos advogados públicos federais, tanto no que se refere à representação judicial e extrajudicial, como no tocante à consultoria e à assessoria jurídica.
14. Diante do notável ganho duplo (de eficiência e de eficácia), não se entende as razões do art. 9º, inciso I, que atribui ao advogado público o dever de “providenciar a infraestrutura física e tecnológica necessária à realização do teletrabalho mediante o uso de equipamentos e instalações que permitam o tráfego de informações de maneira segura e tempestiva”.
15. Parte do significativo ganho orçamentário obtido com o teletrabalho deveria se traduzir na alocação (de parte) da economia por ele gerada no incremento dos meios que viabilizam a sua realização eficaz (“segura e tempestiva”). Além disso, questões de segurança da informação e de sigilo das estratégias de defesa justificam que haja cuidado não apenas com os sistemas usados pela AGU, como dos equipamentos empregados no trabalho, impedindo, por exemplo, que determinados programas possam ser livremente baixados ou usados nos equipamentos. Mas como estabelecer isso se a norma impõe ao advogado público o ônus de providenciar a infraestrutura tecnológica? Se a ideia é prover tempestividade e, sobretudo, segurança no tráfego de informações, tem-se razões de ordem substantiva para que ao menos os equipamentos sejam providos pela AGU, como comumente ocorre em relação aos servidores das agências e autarquias reguladoras que desempenham as suas atividades em regime de teletrabalho.
16. Deve-se, por outro lado, exaltar o fato de que a norma passou a possibilitar, em seu artigo 12, o teletrabalho no exterior na hipótese em que o interessado teria direito à licença para acompanhar o cônjuge ou companheiro, nos termos do art. 84 da Lei n. 8.122/90, bem como na hipótese de acompanhamento de cônjuge ou companheiro que seja servidor público e que tenha obtido autorização para realização de estudo fora do país. Concilia-se, assim, os interesses do integrantes das carreiras de procurador federal e advogado de União em manter a unidade familiar e e o interesse da Administração em contar com a força de trabalho qualificada de seus membros.
17. O trabalho remoto revelou-se uma questão vantajosa tanto para os advogados públicos, que podem dispor de um instrumento flexível de desempenho de suas atividades, conciliando-as com seus interesses e preferências pessoais (além das razões óbvias de resguardo da própria saúde durante a pandemia), como para a própria Administração, haja vista o já mencionados ganhos mensuráveis do regime de teletrabalho. Somos autorizados a concluir que a efetiva e a ampla instituição do teletrabalho consubstancia-se em um verdadeiro poder-dever, tendo em vista a interpretação conjugada de diversos princípios aplicáveis à Administração Pública, como os da eficiência, celeridade, razoabilidade e economicidade.
18. Deve-se ainda atentar para o inegável desperdício de recursos públicos pela manutenção de espaços físicos subutilizados. Não é novidade que muitos – senão todos – prédios atualmente ocupados pelos órgãos de execução da AGU, em Brasília (e muito provavelmente nos Estados), encontram-se em larga medida vazios, o que já ocorria mesmo antes da pandemia de COVID-19, mas foi muitíssimo potencializado por ela[1]. Os aluguéis dos prédios são sabidamente vultuosos – bem como os gastos com manutenção da sua estrutura, sendo que o prolongamento ou a restrição na implementação ampla do teletrabalho também acabam por obstar a revisão definitiva dos espaços e custos correlatos.
19. Diante desse contexto, a adoção do teletrabalho como regime preferencial de trabalho dos advogados públicos federais, mediante a adoção de critérios e procedimentos uniformes para as 4 carreiras, sem as limitações de percentuais máximos ou diferenciações em função de nível da função ocupada, mostra-se a solução mais eficaz, eficiente e equitativa. Bastaria que se tomasse como paradigma o modelo adotado pela PGFN, mormente nos pontos demonstrados no quadro comparativo acima.
20. Assim sendo, embora tenha avançado em relação ao normativo anterior, a Portaria Normativa AGU nº 3/21 merece revisão com vistas a torná-la autoaplicável, obrigatória e orientada por critérios uniformes, aplicáveis para as 4 carreiras da AGU – mormente diante num contexto social de busca por excelência no serviço público e de realização dos princípios administrativos da eficiência, celeridade, razoabilidade e sobretudo economicidade, uma vez que se deixa de economizar vultosa quantia com infraestrutura física, que poderia ser melhor alocada em outras áreas.
21. Diante disso, sugerimos:
a) a revisão da Portaria Normativa AGU nº 3/21, com vistas a torná-la autoaplicável, obrigatória e de incidência ampla e uniforme para os membros das carreiras de Procurador Federal e Advogado da União, tanto do consultivo, como do contencioso, livre de percentuais máximos ou diferenciações em função de nível da função ocupada, adotando-se o prazo de 3 anos para rodízio, tendo como paradigma a Portaria PGFN nº 1069, de 08/11/17 (atualizada pela Portaria PGFN nº 19.759, de 24/08/20), mormente nos pontos mencionados no quadro comparativo acima;
b) a implementação das unidades virtuais por decisão dos órgãos de direção (sem necessidade de centralização de autorização pelo AGU);
c) a apreciação/revisão e o deferimento das solicitações concretas de autorização de realização de trabalho remoto em alternativa à licença para acompanhamento de cônjuge ao exterior (com base no art. 12 da novel norma), mesmo quando o cônjuge trabalhe na iniciativa privada, de forma a evitar a perda/evasão dos requerentes, diante do déficit de membros e inclusive da ausência de previsibilidade de concursos de ingresso na AGU;
d) após a imediata reforma do ato normativo nos termos acima, consulta às entidades associativas dentro do prazo previsto no art. 19, para coleta de subsídios necessários aos aprimoramentos futuros da norma; e
e) a realização de estudos focados nos ganhos de segurança de informações sigilosas e estratégicas que resultariam da aquisição, pela Administração, e distribuição aos Procuradores Federais e Advogados da União, de equipamentos de informática para a realização do teletrabalho.
Brasília, 10 de fevereiro de 2020.
[1] Ver: SOROS, George. O novo paradigma para os mercados financeiros: a crise atual e o que ela significa. Rio de Janeiro: AGIR, 2008.
[1] World Economic Forum, 2020, Resetting the Future of Work Agenda: Disruption and Renewal in a Post-COVID World. October, 21. Disponível em: https://www.weforum.org/whitepapers/resetting-the-future-of-work-agenda-disruption-and-renewal-in-a-post-covid-world. Acesso em 06/02/2020. Participaram da pesquisa mais de sessenta executivos-chefes de recursos humanos de organizações consideradas referência na gestão de pessoas no mundo.
[1] Cf.: https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,governo-economiza-quase-r-700-milhoes-em-4-meses-com-home-office-de-servidores,70003424785; https://oglobo.globo.com/economia/em-um-ano-12-milhao-de-trabalhadores-passam-gerar-renda-em-casa-24029954?utm_source=aplicativoOGlobo&utm_medium=aplicativo&utm_campaign=compartilhar;
https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/economia/2020/07/05/internas_economia,869461/home-office-de-servidores-gera-corte-anual-de-gastos-de-ate-r-500-mil.shtml, todos com acesso em 25/01/2020.
[1] Refiro-me à Portaria PGFN 1.069, de 2017, atualizada pela Portaria n. 19.759, de 2020, que adotou o teletrabalho em caráter permanente e estabeleceu a atuação preferencial em regime de teletrabalho.
[1] Veja-se, a propósito: Governos federal e estadual e prefeitura gastam 637 milhões com aluguel de imóveis na capital paulista | VEJA SÃO PAULO (abril.com.br)