CAROLINA DE CAMPOS MELO é Advogada da União desde 2003. Lotada na Procuradoria Regional da União da 2ª Região, encontra-se em exercício junto à recém-criada Coordenação Nacional de Atuação em Assuntos Internacionais da Procuradoria-Geral da União. Doutora em Direito (Internacional) pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2012) e Mestre em Direito (Teoria do Estado e Direito Constitucional) pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (2001). É professora da Graduação e do Mestrado/Doutorado em Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e pesquisadora do Núcleo de Direitos Humanos. Foi Conselheira da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça (2012-2016) e parte do Comitê de Relatoria do Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade (2014).
Conversamos com ela sobre o tema por ocasião do Dia Internacional do Direito à Verdade em Relação às Violações Graves dos Direitos Humanos e à Dignidade das Vítimas, celebrado nesta quarta-feira (24).
Confira a entrevista:
- O que significa o Dia Internacional da Verdade?
Há onze anos o dia 24 de março passou a ser considerado um dia especial de promoção dos direitos humanos no seio da Organização das Nações Unidas. Por decisão da Assembleia Geral da ONU, o dia passou a ser reconhecido como o Dia Internacional do Direito à Verdade sobre Graves Violações dos Direitos Humanos e para a Dignidade das Vítimas.
A data foi escolhida em memória do arcebispo Oscar Romero, de El Salvador, assassinado durante a celebração de uma missa em 1980. Alguns anos se passaram até que a Comissão da Verdade de El Salvador, de 1992, reconhecesse as circunstâncias da morte de Romero, canonizado em 2018. Esta foi a primeira comissão da verdade constituída ao fim de um conflito armado e a primeira a ser patrocinada e administrada pelas Nações Unidas. Em um período de oito meses, foram recolhidos 2.000 testemunhos de fontes primárias e registrados mais de 7 mil casos de assassinatos, desaparecimentos, torturas e estupros.
O Dia Internacional do Direito à Verdade pretende honrar vítimas de graves violações de direitos humanos (GVDH), como Oscar Romero e tantas outras. A verdade contrapõe-se à falta de esclarecimento e de investigação sobre as GVDH. Surge como uma resposta às narrativas predominantes que negam ou relativizam o ocorrido. Verdade é conhecer os fatos e apurar responsabilidades. No campo do dever ser, a verdade possibilita construir um nunca mais, para que GVDJ não voltem a ocorrer.
A Argentina estabeleceu o dia 24 de março como o Dia Nacional da Memória da Verdade e da Justiça, mesma data do golpe de Estado de 1976 que deu início ao governo das juntas militares.
No Brasil, a Lei n. 13.605/2018 incluiu o Dia Internacional do Direito à Verdade no calendário nacional de datas comemorativas. Por vontade conjunta do Poder Legislativo e Poder Executivo, o dia deve ser celebrado, anualmente, em todo o país, em 24 de março, devendo ser dedicado à reflexão coletiva a respeito da importância do conhecimento circunstanciado das situações em que tiverem ocorrido graves violações aos direitos humanos, seja para a reafirmação da dignidade humana das vítimas, seja para a superação dos estigmas sociais criados por tais violações
O direito à verdade no Brasil tem se voltado para as GVDH cometidas durante a ditadura militar. Se tivermos um olhar mais abrangente, podemos perceber a viabilidade do manejo do direito à verdade para a questão indígena e a questão racial, seja para a compreensão de violações de direitos no passado como no presente.
- Como você se aproximou do tema do direito à verdade?
Estas linhas resultam de uma certa revisão da minha vida profissional. Em 2002, a PUC-Rio criou o seu Núcleo de Direitos Humanos, momento em que fui convidada para coordenar seus trabalhos iniciais. Poucos meses depois de tomar posse na AGU, em 2003, trabalhei na Assessoria Internacional da então Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. Foi deste lugar que tive acesso ao Estudo sobre o Direito à Verdade do Alto Comissariado de Direitos Humanos da ONU. Até então nenhum documento da ONU tinha me suscitado tantas inquietações.
De volta ao Rio de Janeiro, sistematizei os questionamentos sobre o direito à verdade em um projeto para ingressar no programa de doutorado da UERJ. Sustentei na tese intitulada “Nada além da verdade? Consolidação do direito à verdade e seu exercício por comissões e tribunais”, que o direito à verdade se consolidou como uma norma imperativa de direito internacional, entendendo a complementaridade entre as comissões da verdade e os tribunais, mecanismos por excelência do campo da justiça de transição, como a melhor combinação para conferir aplicabilidade para este direito.
Pouco mais de um ano depois da defesa, recebi o convite para compor a Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, órgão previsto pela Lei n. 10.559/2002, que regulamenta o art. 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, competente para analisar requerimentos administrativos daqueles que, por motivação exclusivamente política, foram perseguidos, punidos, demitidos, reformados. Nos anos em que estive na Comissão de Anistia compreendi a capilaridade da ditadura militar e o impacto na vida de milhares de requerentes. Para muitas e muitos, o depoimento pessoal, a sistematização das provas, o reconhecimento da condição de anistiada/do e os pedidos de desculpa em nome do Estado brasileiro representavam o resgate da verdade.
A instituição da Comissão Nacional da Verdade em 2012, tardia em comparação com muitos outros países que instituíram comissões da verdade nas transições de regimes autoritários e conflitos internos, foi um importante passo para o direito à verdade. Primeiramente porque a Lei n. 12528/2011 prevê que o órgão temporário teve por finalidade examinar e esclarecer as graves violações de direito humanos praticas no período fixado no art. 8º ADCT, a fim de efetivar o direito à memória e à verdade histórica. Também porque acompanhei as atividades diárias do órgão e especialmente a atuação da Advocacia Geral da União ao defender os atos da CNV perante o Poder Judiciário. Foi um momento importante de uma Advocacia Pública Federal voltada para a defesa do direito à verdade.
Na CNV acompanhei o debate sobre direito à verdade e os limites impostos pela Lei de Anistia de 1979. A CNV teve que lidar com duas decisões aparentemente conflitantes, ambas do ano de 2010: a decisão do Supremo Tribunal Federal que afirmou a constitucionalidade da Lei 6683/1979 e a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Araguaia, que determinou a responsabilidade internacional do Brasil por não ter realizado o controle de convencionalidade da anistia, violadora do direito à verdade ao obstaculizar as investigações sobre as circunstâncias e responsáveis pelos desaparecimentos objeto das demanda internacional. A recomendação da CNV de que os agentes públicos que deram causa às GVDH deveriam ter a sua responsabilidade jurídica – criminal, civil e administrativa – apurada resulta da constatação de que as GVDH operacionalizadas pelo regime militar decorreram de uma ação generalizada e sistemática do Estado brasileiro, caracterizadas como crime contra a humanidade, esvaziando as versões de que estas constituiriam atos isolados ou excessos gerados pelo voluntarismo de alguns militares. Com isso, a CNV conecta diretamente o tema da verdade com a ideia de responsabilidade.
Na condição de pesquisadora do Núcleo de Direitos Humanos da PUC-Rio busco acompanhar o desenvolvimento normativo e jurisprudencial do direito à verdade no sistema ONU e no sistema OEA. Mais recentemente, um grupo de pesquisadores tem voltado o olhar para os desafios contemporâneos ao direito à verdade, no Brasil e no mundo, em um cenário do incremento dos discursos que negam ou relativizam GVDH perpetradas no passado.
- Qual a extensão do direito à verdade? Trata-se de um direito individual ou coletivo? Como se pode exigir o direito à verdade?
Toda sociedade tem o direito inalienável de conhecer a verdade integral sobre GVDH, de forma a aprender sobre experiências do passado e prevenir ocorrências no futuro. É o direito de conhecer sobre o ocorrido, as circunstâncias específicas, os responsáveis e a motivação. O termo “GVDH” é interpretado hoje como violações a direitos que não podem ser suspensos, mesmo em períodos de emergência. Na prática, estamos falando de casos de execuções, tortura, violência sexual, abdução de crianças, desaparecimentos forçados.
Sua dimensão coletiva convive com a dimensão individual, exigível pela vítima ou por seus familiares. O direito à verdade adquire contornos especiais no que se refere aos casos de desaparecimentos forçado e a exigência de se conhecer o destino e o paradeiro da vítima direta.
O direito à verdade impõe ao Estado o dever de lembrar: estabelecer instituições e procedimentos que visem a busca pela verdade. Comissões da verdade, arquivos públicos, museus, lugares de memória, programas de proteção a testemunha e bancos genéticos para fins de identificação de desaparecidos são apenas bons exemplos. Cabe aqui um papel especial reservado ao Judiciário, poder que tem ocupado um papel de protagonismo no desenvolvimento do direito à verdade, especialmente na América Latina. No caso brasileiro, cabe destacar o papel do Ministério Público, seja na proteção da tutela coletiva ou no manejo de ações civis e denúncias criminais para a responsabilidade de agentes públicos. Afinal, há fatos e responsabilidades que, precisamente para o exercício do devido processo, apenas podem ser reconhecidas pela atividade jurisdicional.
O dia 24 de março resulta de iniciativas no seio da ONU e da Organização dos Estados Americanos (OEA) para o desenvolvimento de seus contornos. Na década de 1990, o debate sobre o direito à verdade vincula-se estreitamente ao combate à impunidade. Desde 1997, com a publicação dos Princípios Joinet, discute-se o dever de lembrar do Estado. Nos “Princípios Atualizados” de 2005 acrescenta-se a preocupação específica sobre obrigação de preservar a memória por meio da conservação e acesso a arquivos. Em 2006, o direito à verdade passa a percorrer um caminho próprio, momento em que é publicado o informe do Alto Comissariado para Direitos Humanos, o “Estudo sobre o direito à verdade”.
Em 2011, o Conselho de Direitos Humanos da ONU criou a Relatoria Especial para a Promoção da Verdade, Justiça, reparação e garantias de não-repetição, que tem sido chamada de Relatoria para Justiça de Transição. Por sua vez, a atuação da Comissão Interamericana e a jurisprudência constante da Corte Interamericana tem orientado os Estados em temas como leis de anistia, prescrição, indulto, justiça militar, crime contra humanidade, reparação integral e tantos outros temas correlatos ao direito à verdade. Mais recentemente, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) instituiu a Unidade sobre o tema, convertida em 2019 na Relatoria sobre Memória, Verdade e Justiça.
O continente americano cultiva ricas experiências de comissões da verdade, julgamento de agentes públicos que cometeram graves violações de direitos humanos, bem como iniciativas de memória. Nos últimos anos, tem se verificado o ataque a lugares de memória e o apelo a discursos que negam ou relativizam graves violações de direitos humanos perpetradas no passado.
Neste contexto, em novembro de 2019, a CIDH adotou os Princípios sobre Políticas Públicas de Memória nas Américas. A resolução afasta qualquer pretensão de que a verdade e a memória podem ser flexibilizadas, aos ventos de governos e grupos sociais. Entende-se por memória as formas em que as pessoas e os povos constroem sentido e relacionam o passado com o presente no ato de recordar as graves violações de direitos humanos e/ou ações das vítimas e sociedade civil na defesa e promoção dos direitos humanos e valores democráticos em tais contextos.
Verdade e memória devem promover direitos humanos e valores democráticos.
- Em que medida o direito à verdade pode nos orientar diante do cenário pandêmico?
Chegamos ao Dia Internacional do Direito à Verdade tendo alcançado o marco de 300.000 mortes resultantes da COVID-19, ultrapassado o registro de 3000 mortos em 24 horas.
Meu interesse pelo direito à verdade teve por pressuposto a compreensão de que a transição política para a democracia no Brasil – bem como a consolidação democrática – devem dar-se por meio da prestação de contas com o passado. A emergência sanitária no Brasil escancara que a prestação de conta sobre o presente constitui oxigênio necessário para a democracia.
A pandemia alterou o pensar e o agir. Os sistemas de direitos humanos enfrentam nos últimos meses o desafio de compreender a emergência sanitária global no arcabouço desenvolvido pelos tratados e órgãos, bem como os esforços dos Estados em lidar com um desafio de tal magnitude.
Não demorou para que a CIDH criasse a Sala de Coordenação e Resposta Oportuna e Integrada – SACROI e formulado, em abril de 2020, a Resolução 1/2020 denominada “Pandemia e Direitos Humanos nas Américas”. O documento parte do pressuposto de que a plena vigência dos direitos humanos encontra-se impactada pela pandemia, em curto, médio e longo prazo. Sistematiza os standards consolidados no sistema regional sobre direito à saúde e outros direitos econômicos, sociais e culturais, Estado de Direito/Estado de exceção, grupos em situação de vulnerabilidade, pessoas idosas, pessoas privadas de liberdade, mulheres, povos indígenas, migrantes/refugiados/deslocados, crianças e adolescentes, pessoas LGBTI, pessoas afrodescendentes e pessoas com deficiência. No mês de julho do mesmo ano, foi adotada a Resolução n. 4, “Direitos Humanos das pessoas com COVID-19”, documento de caráter inovador, ao tratar das pessoas presumidamente contagiadas pelo vírus, pessoas que estão em fase pré-sintomática, sintomáticas (leves, moderados, severos ou críticos), assim como as assintomáticas, aos que se submetem a investigação médica e as vítimas mortais da pandemia, assim como suas famílias e cuidadoras/es.
A resolução 4 dialoga com a luta das vítimas e dos familiares diante de regimes autoritários e conflitos armados e a consolidação do direito de conhecer sobre a situação de seus entes queridos e do direito ao luto. Faz valer o entendimento jurisprudencial desenvolvido em relação a povos indígenas e comunidades tradicionais de que estes realizem seus ritos mortuários conforme suas próprias tradições e cosmovisão. Revalida as obrigações gestadas nos tratados e sentenças sobre desaparecimentos forçados para determinar a obrigação dos Estados de conhecer o destino e o paradeiro dos entes queridos quando falecem em resultado da COVID-19. A CIDH recomenda que os Estados se abstenham de realizar enterros em fossas comuns e proíbam a incineração dos restos mortais.
A CIDH sustenta, na mesma Resolução 4, o direito de beneficiar-se do progresso científico e suas aplicações no campo da saúde, devendo os Estados adotar medidas dirigidas ao acesso a medicamentos, vacinas, bens e tecnologias médicas essenciais que se desenvolvam a partir de práticas e conhecimentos científicos no contexto de prevenir e tratar o contágio da COVID (parágrafo 11)
O convite do Centro de Estudos da ANAFE conduziu-me à seguinte reflexão. 24 de março é dia de memorar. Não qualquer memória mas aquela que promove direitos humanos e valores democráticos. O direito à verdade consolidou-se historicamente como contraposição à negação ou relativização sobre o ocorrido, com a perspectiva do nunca mais. O direito à verdade neste 24 de março de 2021 exige conhecer o presente com a perspectiva de que este não continue a ocorrer.