Murilo Teixeira Avelino *
O novo Código do Processo Civil (CPC) consagrou a “cláusula geral de negociação processual” em seu art. 190. Um de seus requisitos é que o direito objeto do processo admita autocomposição, ou seja, uma forma de solucionar o conflito pelo consentimento espontâneo entre os conflitantes.
À época, esta exigência levou vários intérpretes a, em uma primeira leitura, entender pela impossibilidade de a Fazenda Pública firmar negócios jurídicos processuais. Não procede.
A indisponibilidade do interesse público não desautoriza a Fazenda Pública em Juízo se submeter à solução consensual dos conflitos, muito menos firmar convenções processuais. Em outras palavras, a indisponibilidade do interesse público não impede genericamente que a Fazenda Pública participe de autocomposição. “Desta forma, a exigência de que o direito admita autocomposição não é, por si só, um fato que impeça a Fazenda Pública de celebrar negócios processuais” [1].
Tudo isso é corroborado pela lei n° 9469/97, que já previa expressamente a realização de acordos visando a prevenção ou resolução de conflitos envolvendo o Poder Público. A mesma lei autoriza a não propositura de ações e dispensa de recursos por parte da Advocacia Pública Federal. No mesmo sentido, as leis n° 10.259/2001 e n° 12.152/2009 autorizam os representantes judiciais da Fazenda Pública a conciliar, transigir ou desistir nos processos da competência dos Juizados Especiais.
Ademais, o próprio CPC, em seu art. 174, prevê que a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios criarão câmaras de mediação e conciliação, com atribuições relacionadas à solução consensual de conflitos no âmbito administrativo.
Portanto, não há como fundamentar eventual impossibilidade de firmar convenções processuais na indisponibilidade do interesse público. A Fazenda Pública pode celebrar negócio jurídico, pode se submeter à autocomposição. Quanto ao ponto, não resta qualquer dúvida [2].
Nesse sentido, o enunciado n° 135 do Fórum Permanente de Processualistas Civis (FPPC) traz o seguinte trecho: “A indisponibilidade do direito material não impede, por si só, a celebração de negócio jurídico processual”. Mais uma vez, parece uma lição tranquila na doutrina. A Fazenda Pública pode se submeter à audiência prévia de autocomposição (art. 334 do CPC) e, do mesmo modo, firmar negócios jurídicos processuais.
A compreensão restou acertada em diversos fóruns dedicados a debater o CPC. O enunciado n° 256 do FPPC, por sua vez, dispõe: “A Fazenda Pública pode celebrar negócio jurídico processual”. No mesmo sentido, o enunciado n° 9 do I Fórum Nacional do Poder Público: “A cláusula geral de negócio processual é aplicável à execução fiscal “.
Recentemente, o Conselho da Justiça Federal editou o Enunciado n° 17 na Primeira Jornada de Direito Processual Civil: “A Fazenda Pública pode celebrar convenção processual, nos termos do art. 190 do CPC”.
Assim, podemos concluir que a tutela do interesse público indisponível não representa por si só qualquer impedimento aos negócios jurídicos processuais. Eventual vedação deve ser expressa. Em outros termos:
Especificamente quanto às ações envolvendo a Fazenda Pública, não devem ser permitidos os negócios processuais que acarretem prejuízos concreto ao interesse e ao patrimônio público, como aqueles que importem renúncia aos bens e direitos pertencentes ao Poder Público, sem que haja autorização legislativa para tanto. Porém, se a negociação não acarretar qualquer restrição indevida aos bens e direitos pertencentes à Fazenda, nem violar o interesse público, deve ser admitida. [3]
Nesse sentido, o advogado público responsável pelo processo não poderá firmá-lo caso haja vedação em ato infralegal que regule sua atuação (pareceres, súmulas administrativas, e demais orientações internas) ou na hipótese em concreto de a convenção violar o interesse público. Neste caso, não há como fixar parâmetros prévios e estritos. O servidor público advogado é encarregado, dentro de sua autonomia técnica, pela avaliação. Tudo isso sem embargos de sua responsabilidade funcional.
Um ponto é certo, todavia: os atos administrativos, quando existirem, devem ser proibitivos, pois a regra é a permissão. Jamais o contrário.
* Mestre em Direito Processual Civil e professor de Direito Processual Civil (ex-professor da UFPE), Murilo Avelino é procurador da Fazenda Nacional associado à Associação Nacional dos Advogados Públicos Federais (ANAFE).
[1] TEIXEIRA, José Roberto Fernandes. Negócios jurídicos processuais e Fazenda Pública. In: ARAÚJO, José Henrique Mouta; CUNHA, Leonardo Carneiro da; RODRIGUES, Marco Antônio. Coleção Repercussões do Novo CPC – vol. 3. Salvador: JusPodivm, 2016. p. 289.
[2] No mesmo sentido: “Não há, assim, qualquer óbice a que a Fazenda Pública, em tese, participe de negócios processuais ou de convenções sobre o processo. A indisponibilidade do interesse público não é impedimento a isso, inclusive por ser possível a celebração de um negócio jurídico que fortaleça as situações jurídicas processuais do ente público” (NOGUEIRA, Pedro Henrique. Negócios Jurídicos Processuais. Salvador: JusPodivm, 2016. p. 233)
[3] PEIXOTO, Marco Aurélio Ventura; PEIXOTO, Renata Cortez Vieira. Fazenda Pública e Execução. Salvador: JusPodivm, 2017. p. 129.
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