Marcelo Kokke*
A abordagem de temas, problemas e questões de enfrentamento político-social e jurídico exige contextualização e planejamento metodológico. A falta de ambos compromete não apenas a eficiência, mas abre também espaços para argumentos desprendidos de fundamento ou para verdades convencionadas em uma percepção geral, que não encontram solidez quando estudadas a fundo. Um exemplo disso é a abordagem da Reforma Administrativa, que atualmente sofre exatamente desses problemas ao ser tematizada mais como uma reforma de recursos humanos, do que para a estruturação e eficiência das instituições em favor da sociedade.
A contextualização dos problemas da administração pública brasileira requer o reconhecimento das bases de organização da própria gestão pública. O Brasil nasceu como um empreendimento de exploração privada, descomprometido com a sedimentação de instituições internas. Ao contrário de matrizes sociopolíticas de outros países, a matriz brasileira surge com a repartição privada do território orientada para a extração ilimitada e descomprometida de riquezas. Governo-Geral, capitanias hereditárias, sesmarias, Lei de Terras, dentre outras, envolvem-se em um contexto em que o interesse público era incipiente, definhado em sua real aplicação. A gestão pública no Brasil sempre teve por desafio romper uma imagem que assimilava o interesse público ao interesse privado, como se houvesse somente “um” interesse privado, por sinal.
O subconsciente nacional ainda conserva em si essa matriz, manifesta em expressões bipolares constantes na sociedade e na economia, nas quais por vezes se quer o afastamento do Estado, por vezes lhe reclamam socorro ou presença contínua. A Reforma Administrativa não toca em uma efetiva proteção da gestão pública em face da marca hereditária nacional que contagia o interesse público com a parcialidade da vontade privada. A tutela da gestão pública imparcial é pilar de proteção da sociedade, do próprio mercado e das empresas, a garantir isonomia, previsibilidade e segurança jurídicas.
A Reforma Administrativa, ao encarar a gestão pública como gestão de recursos humanos, não tematiza um dos principais problemas nacionais: A gestão do medo. Ela se manifesta tanto na esfera privada quanto na pública. Na esfera privada, na dimensão do mercado e da sociedade civil, o medo se expressa na insegurança em como as normas serão aplicadas ao indivíduo ou à empresa. No temor de um sorriso mal colocado ou de uma vírgula mal empregada serem os fatores decisivos entre o sucesso e o insucesso, entre o livramento e a punição. O caráter privado ainda imperante na gestão pública vincula relacionamentos pessoais como condição para a solução de problemas legais. Como a reforma pode contribuir para romper esses laços e garantir uma efetiva atuação, principalmente em relação às carreiras de Estado?
O fortalecimento do contencioso administrativo é simplesmente ignorado na reforma como se apresenta atualmente. O enfrentamento dos níveis de insegurança jurídica, econômica e social, com resguardo e robustecimento da previsibilidade privada e pública quanto à atuação do Estado, passa pela efetiva atuação da Advocacia-Geral da União, em sua inerente configuração de carreira de Estado. O custo Brasil é marcado pela insegurança e incerteza institucionais, que constantemente levam a judicializações e elevação ainda maior das instabilidades. Uma efetiva Reforma Administrativa deve se centrar na elevação de níveis de unidade e gestão da legalidade, fortalecendo o contencioso e a governança jurídica interna a fim de estabilizar o solo pantanoso que caracterizou os marcos regulatórios brasileiros ao longo dos anos. Não se constrói um mercado interno forte ou uma sociedade civil segura de seus passos sem instituições sólidas e definidas em suas matrizes de legalidade.
A dinâmica da separação ou divisão dos poderes no ocidente sempre se pautou pela atuação do Judiciário para solução do passado, e não para a unidade de projeção de entendimento administrativo para o futuro. No Brasil, isto foi posto de lado. Sem o resgate dessa atribuição à Administração Pública, em nada a Reforma Administrativa irá contribuir para a redução de instabilidades. O caleidoscópio jurídico irá se perpetuar na geração de volatilidades, litígios, crises de marco regulatório e afastamento de investidores, internos e externos.
Lado outro, o medo está a imperar também sob o ângulo dos gestores públicos. Os órgãos de controle se sobrepõem e se infiltram em temas próprios da Administração Pública. Para além disso, são constantes as ações civis públicas, ações de improbidade e mesmo ações penais cujo motivo central é a discordância para com a opção de política pública legítima assumida pelo gestor. Este, por sua vez, vive um cenário de medo de inovar, medo de atuar de forma diferente, mesmo que eficiente. Se na iniciativa privada a inovação e o “pensar fora da caixa” são parâmetros de condução, na esfera pública isso pode significar anos de judicialização na qual o gestor caminha com uma espada de Dâmocles sobre sua cabeça. A atuação da Advocacia Pública em favor da viabilização de políticas públicas em legalidade e anteparo ao gestor público probo exige mecanismos de reforço e segurança, que foram simplesmente ignorados na reforma.
Há um antagonismo interno na PEC 32/2020. Simultaneamente, em um referencial de intenções principiológicas, remete à legalidade, impessoalidade, imparcialidade, inovação, transparência, unidade, coordenação e boa governança, mas não indica ou expressa o fortalecimento institucional interno da Administração Pública para alcançar esses objetivos. Sem a solidificação das carreiras de Estado, tal como da Advocacia-Geral da União em seu papel de pedra angular da expressão jurídica, judicial e extrajudicial da Administração Pública, as instabilidades públicas e privadas irão continuar. A Reforma Administrativa deve ser voltada para a solidez de instituições e eficiência, algo muito mais complexo e desafiador do que uma reforma de RH.
*Marcelo Kokke, pós-doutor em Direito Público pela Universidade de Santiago de Compostela – ES. Mestre e Doutor em Direito pela PUC-Rio. Especialista em processo constitucional. Pós-graduado em Ecologia e Monitoramento Ambiental. Procurador Federal da Advocacia-Geral da União associado à ANAFE. Professor da Faculdade Dom Helder Câmara. Professor do Uni-BH.
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