Por Grégore Moreira de Moura
O ano de 2020 ficou marcado por diversos episódios configuradores de racismo, como a morte de George Floyd nos Estados Unidos pelo fato de ter dado uma nota falsa de US$ 20 em supermercado [1]; ofensa a uma professora negra que foi acusada de furto em Curitiba [2]; injúria racial no meio de uma partida de futebol contra o atacante senegalês Demba Ba, praticada pelo quarto árbitro, o romeno Sebastian Coltescu [3], causando protesto dos times, que abandonaram o jogo, além da suposta injúria racial contra o jogador Gérson, do Flamengo [4].
Tais acontecimentos só demonstram que o racismo estrutural ainda permeia não só a cultura brasileira, mas a de diversos outros países.
Portanto, é de bom tom que se faça uma análise rápida dos aspectos históricos, penais e criminológicos da relação entre sistema penal e racismo.
O racismo estrutural é o conjunto de práticas e informações que tem relação institucional, histórica, cultural e interpessoal, o que desfavorece a pessoa negra em diversos aspectos, como o acesso a oportunidades de emprego, divergência salarial, inserção econômica, ou seja, gera exclusão social, judicialização da pobreza, seletividade penal e etiquetamento da pessoa negra como “cliente” assídua do sistema penal.
Sob o aspecto histórico, vale lembrar que a Lei Eusébio de Queiroz 1850 (Lei nº 581 de 4 de setembro de 1850) estabeleceu medidas para a repressão do tráfico de africanos no Império. Sua promulgação é relacionada, sobretudo, às pressões britânicas sobre o governo brasileiro para a extinção da escravidão no país.
Para se ter uma ideia da movimentação comercial gerada pela entrada de africanos escravizados no Brasil, calcula-se que o lucro girava em torno de 500%, ainda que 25% dessas pessoas morriam no transporte, sendo que de 1801 a 1805 tivemos 117 mil pessoas negras africanas escravizadas no país [5] e, ao contrário do que muitos pensam, há diversos historiadores que defendem que esse tráfico ainda continuou por anos, mesmo após a edição da lei.
Em 13 de maio de 1888, publica-se a Lei Áurea, que, ao menos sob o aspecto formal, aboliu a escravatura, não evitando que, sob o aspecto material, a pessoa negra ainda encontrasse barreiras para se inserir totalmente no contexto social, o que acontece até hoje, salvo raras exceções.
Tudo isso tem reflexo na legislação penal, não só porque as leis penais são feitas eminentemente por pessoas brancas, de classe média/alta, tendo como pano de fundo uma sociedade marcada pelo preconceito contra a pessoa negra, mas também pela influência histórico-cultural que rondou a edição do Código Penal de 1940, época em que o Brasil vivia em uma sociedade eminentemente rural e marcada por fortes raízes religiosas e racistas.
Tanto que somente com a Constituição de 1988 o repúdio ao racismo torna-se princípio regente da República Federativa do Brasil (artigo 4º) e a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei (artigo 5º, XLII).
Por sua vez, o Código Penal tem as seguintes menções ao termo “raça” em seu bojo: no artigo 140, §3º ( “Se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência”) e no artigo 149, §2º, II (“por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem”).
Além disso, o artigo constitucional supramencionado foi regulamentado pela Lei 7716/89, vulgarmente conhecida como Lei do Racismo.
À vista do que dispõem as aludidas normas infraconstitucionais, é importante distinguir a injúria racial do crime de racismo.
A primeira tem por objetivo proteger a honra subjetiva da pessoa negra, já os crimes de racismo da Lei 7716/89, além de serem inafiançáveis e imprescritíveis, visam a proteger a coletividade, ou seja, a raça como um todo.
Com efeito, se o agente usa a pessoa negra como instrumento para atingir a raça em seu aspecto amplo, o crime será o da Lei 7716/89, obviamente se preechidos os requisitos legais dos seus tipos penais, como, por exemplo, criar obstáculos para pessoa negra, não permitindo seu acesso a emprego ou a estabelecimentos comerciais, hotéis e outros, ou mesmo recursar atendimento em casas de diversões pelos mesmos motivos.
Por outro lado, se a intenção do agente é humilhar a vítima, com o animus injuriandi para atingir a pessoa negra em sua dignidade, decoro e particularidades morais, utilizando-se de elementos ligados à sua raça, perfaz-se o crime de injúria racial previsto no artigo 140, §3º, do Código Penal.
Vale lembrar que há uma discussão relativa à imprescritibilidade do crime de injúria racial, objeto do HC nº 154.248, de relatoria do ministro Edson Fachin [6], ainda pendente de julgamento, que pode estender ao crime de injúria racial a impossibilidade de prescrição por ser considerado crime de racismo na forma do artigo 5º, XLII, CF.
Todavia, embora a sociedade tenha evoluído desde a edição da Lei Eusébio de Queiroz de 1850, o acarbouço jurídico que vige sobre a matéria ainda não é suficiente para combater as condutas criminosas eivadas de racismo. Isso fica claro quando se observa que de 2012 a 2019 tivemos 255 mil mortes de pessoas negras no país [7], isto é, a chance de uma pessoa negra ser assassinada no Brasil é 2,7 vezes maior do que de uma pessoa branca.
Daí vem pergunta: a criminologia crítica trata de uma maneira específica esse tipo de criminalidade praticada contra a pessoa negra? Existem estudos específicos sobre a criminalização primária e secundária da pessoa negra? O processo de mudança passa por um combate ao racismo pela melhoria da legislação penal ou o problema é histórico-cultural? Novas mudanças na legislação seriam resolutivas, diante da seletividade promovida pelas agências executivas na criminalização secundária?
A resposta a esses questionamentos merecem digressões que esse trabalho não permite; todavia, se propõe um caminho para minorar os efeitos de uma “academia branca e elitista”.
A primeira proposta é inserir a pessoa negra nos estudos criminológicos para verificar os efeitos da criminalização primária e secundária sob essa ótica, além das questões de sua vitimização primária, secundária e terciária de maneira mais ampla, e não só focada no viés de falta de oportunidades econômicas.
Como se não bastasse, há de se combater os resquícios e as tentativas de resgate de uma bioantropologia que pairam sobre o sistema penal desde a época da Escola Positiva capitaneada por Cesare Lombroso, as quais culminam em um Direito Penal de autor negro, criando um esteriótipo e uma rotulação da pessoa negra como se fosse um moderno “criminoso atávico” ou um inimigo a ser combatido de todas as formas, como demonstram os dados carcerários, podendo-se constatar que 65% ou mais das pessoas que estão encarcerados no Brasil são de origem negra ou parda [8].
Sem dúvida, é preciso repensar essa academia branca que cria teorias no Direito Penal, Processo Penal e, principalmente, na Criminologia.
A Criminologia, como ciência do ser, que busca explicar as causas do delito e seu estudo real e concreto, não pode olvidar que a pessoa negra é etiquetada, rotulada e selecionada pelo sistema criminal, o que pode ser minorado com o combate à chamada “branquidade acadêmica”, ou alguém duvida que nossas pré-compreensões, advindas de uma sociedade branca, de classe média e inserida socialmente, não mudam nosso olhar e nossa visão de mundo do crime?
Ora, é preciso que a Criminologia da pessoa negra apareça como forma de produção científica com foco e viés na ideia de proteção do negro, pois só assim, mudando o saber, mudamos a cultura, para promover a equalização de forças, principalmente, no momento da criminalização secundária.
A maldita herança cultural, social, estrutural e criminológica que seleciona o negro para as teias do sistema penal e promove sua exclusão dupla (econômico-social que se transforma em prisional) não só perpassa por mudanças de infraestrutura política, passa por uma alteração de visão teórico-acadêmica, para enxergar a pessoa negra com lentes constitucionalmente adequadas.
Martin Luther King dizia que “não importa a cor quando duas mãos estão juntas projetando a mesma sombra“. Projetemos a mesma sombra na Criminologia, para que a cor da pele não mais importe para efeitos da criminalização, pois só assim seremos iguais tanto na opacidade quanto na claridade da luz.
[1] Disponível em https://g1.globo.com/mundo/noticia/2020/05/27/caso-george-floyd-morte-de-homem-negro-filmado-com-policial-branco-com-joelhos-em-seu-pescoco-causa-indignacao-nos-eua.ghtml. Acesso em 27.01.2021.
[2] Disponível em https://spbancarios.com.br/11/2020/chega-de-racismo-relembre-os-casos-ocorridos-em-2020. Acesso em 27.01.2021.
[3] Disponível em https://www.cnnbrasil.com.br/esporte/2020/12/08/jogadores-do-psg-abandonam-jogo-da-liga-dos-campoes-apos-injuria-racial. Acesso em 27.01.2021.
[4] Disponível em https://globoesporte.globo.com/futebol/times/flamengo/noticia/gerson-chega-na-delegacia-para-depor-sobre-acusacao-de-racismo-no-flamengo-x-bahia.ghtml. Acesso em 27.01.2021.
[5] Para mais informações sobre os números ver https://brasil500anos.ibge.gov.br/territorio-brasileiro-e-povoamento/negros. Acesso em 03.02.2021.
[6] Ver http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5373453. Acesso em 27.01.2021.
[7] Ver https://exame.com/brasil/ibge-populacao-negra-e-principal-vitima-de-homicidio-no-brasil/. Acesso em 03.02.2021.
[8] Ver https://www.almapreta.com/editorias/realidade/negros-e-perifericos-sao-os-mais-afetados-pelo-aumento-da-populacao-carceraria-no-brasil. Acesso em 03.02.2021.
Grégore Moreira de Moura é procurador Federal da AGU associado à ANAFE, palestrante, conselheiro seccional da OAB-MG, mestre em Ciências Penais e Doutor em Direito Constitucional pela UFMG, professor da PUC-MG, autor dos livros “Direito Constitucional Fraterno”, “Do Princípio da Coculpabilidade” e em coautoria o livro “Criminologia da Não-cidade” todos da Editora D’Plácido e ex-diretor nacional da Escola da AGU.
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