Lademir Gomes da Rocha e Pablo Bezerra Luciano*
A grande notícia dos últimos dias no Brasil foi a autorização no dia 17 de janeiro de 2021 do uso emergencial de vacinas contra a Covid-19, no âmbito da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Num gesto de transparência, foi transmitida pela televisão a sessão deliberativa da Diretoria Colegiada, permitindo o acompanhamento por parte do amplo público das razões técnicas que levaram a entidade a permitir o início da vacinação no país.
Poucos eventos ilustraram tão bem a importância da profissionalização da burocracia estatal, formada a partir de processos de recrutamento específicos e guiada por procedimentos, normas e competências bem delimitados, sob os auspícios de regras jurídicas protetivas de suas autonomias.
Criada por meio da Lei nº 9.782, de 26 de janeiro de 1999, a Anvisa é parte de um grande e lento processo de racionalização, institucionalização e profissionalização do aparelho estatal, que se relaciona com o desenvolvimento da civilização, da democracia, da ciência, do individualismo e da economia em geral.
Como nos lembram os historiadores, a escrita não é filha da poesia ou das artes. A escrita é uma invenção essencialmente do que chamaríamos “burocracia”. Trata-se de uma emergência ditada pelo crescimento populacional e pela necessidade de se preservar grandes volumes de informações matemáticas sobre produção e tributos que não poderiam ser confiadas apenas à memória humana. A burocracia nasce então com a escrita, dando oportunidade para o desenvolvimento dos grandes impérios e civilizações que vieram a dominar todo o planeta.
Por séculos, a burocracia dedicou-se basicamente às funções de arrecadação de tributos, à administração de obras públicas e à gestão da guerra. Poucas eram as atribuições dos Estados em termos de políticas públicas, porque se considerava que a comunidade e a família seriam capazes de regular e tratar os principais aspectos da convivência humana.
De fato, em sociedades tradicionais, as relações pessoais, sociais e econômicas são previsíveis e previamente estabelecidos pelo nascimento, pela família ou pela comunidade. O conhecimento é passado de geração para geração oralmente. Há fixidez nas profissões e ocupações e muito reduzida mobilidade social. O indivíduo, como senhor de sua vida e de seu futuro, praticamente não existe. O filho do agricultor tende a ser agricultor. O filho de mercador tende a ser mercador. Os ofícios de um e de outro são transmitidos pelos pais e aprendidos na prática cotidiana.
Já em sociedades complexas como a nossa, marcadas por grande mobilidade social, a imprevisibilidade é a tônica. A família e a comunidade já não são capazes de ditar o futuro dos indivíduos. O conhecimento científico é institucionalizado, perdendo a marca da oralidade. A ciência determina a criação e o desaparecimento de profissões e ocupações, provocando um desenvolvimento econômico sem paralelo na história da humanidade.
Conclui-se daí que o individualismo, ou seja, a possibilidade de escolhas livres do peso da tradição, voltadas ao livre desenvolvimento da personalidade, é fruto da consolidação do Estado moderno, e não seu inimigo, como preconizam certas concepções desalinhadas com a história do liberalismo político e filosófico.
Contemporaneamente, o crescimento da burocracia tem sido fomentado pela percepção de que nem todos os aspectos do funcionamento estatal devem flutuar ao sabor das vontades e contingências políticas ou do Chefe do Executivo de turno. Se inicialmente a burocracia surge como um reflexo da imperfeição da memória humana e como um recurso útil à atividade financeira do Estado, nas últimas décadas vem ocupando um espaço que outrora era assunto de experimentações discricionárias da política, num processo caracterizado por obstáculos, incompreensões e preconceitos. Não sem dificuldades, tem se fortalecido a percepção de que é preciso criar instituições ou entidades estatais especializadas e permanentes, semelhantes à Anvisa, voltadas ao à regulação e à fiscalização de assuntos relativos à saúde pública, à saúde, ao meio ambiente, aos serviços públicos ao sistema financeiro, e a outras atividades econômicas de largo impacto socioeconômico.
Mas nem sempre foi assim. Com efeito, durante a histórica sessão plenária do Supremo Tribunal Federal (STF) de 17 de novembro de 1962, quando se discutiu o Mandado de Segurança (MS) nº 8.693, o entendimento que prevaleceu foi o de que em decorrência do sistema Presidencialista, não seria possível ao Legislativo estipular limites ao Chefe do Executivo para a exoneração de servidores públicos. A maioria do STF, na esteira do voto do Min. Ribeiro da Costa, legitimou a exoneração do impetrante, Murillo Gondim Coutinho do Conselho Administrativo do Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Industriários, por ato do então Presidente da República, Jânio Quadros, muito embora a lei previsse investidura por prazo certo de 4 (quatro) anos.
Por ocasião do julgamento do MS nº 8.693, o Min. Victor Nunes Leal proferiu emblemático voto vencido, no qual argumentou que a investidura de servidor público por prazo certo contribuiria para conferir “continuidade de orientação e independência de ação de tais entidades autônomas, de modo que os titulares, assim protegidos contra as injunções do momento, possam dar plena execução à política adotada pelo Poder Legislativo, ao instituir o órgão autônomo”. O Min. Victor Nunes Leal ainda pontuou que “a atual legislação, que em todos os países civilizados procura resguardar o serviço público civil da influência ilimitada da política, foi precisamente uma conquista, lenta e penosa, contra o spoil system”.
Em 17 de novembro de 1962, como se viu, prevaleceu no STF o sistema do clientelismo contra a burocracia profissional. E, após julgados assemelhados, veio a ser editado em dezembro de 1963 o Enunciado nº 25 da Súmula do STF, segundo os quais “a nomeação a termo não impede a livre demissão, pelo Presidente da República, de ocupante de cargo dirigente de autarquia”, que representou por décadas severo impedimento à modernização da burocracia brasileira.
Esse quadro só veio a mudar a partir dos novos influxos legislativos que redundaram na criação na segunda metade da década de 1990 de diversas agências reguladoras, entidades públicas autárquicas, dotadas de autonomia reforçada pela previsão de prazo certo para a investidura de seus dirigentes. Nessa época, um quadro de uma administração pública artesanal, desarticulada, pouco profissional e flutuante ao sabor dos governos de turno já era insustentável diante da nova realidade socioeconômica.
Felizmente hoje há o consenso nos meios políticos e jurídicos de que a sucessão da chefia do Executivo não pode dar caso à imagem da terra-arrasada. A vitória de um grupo político em eleições democráticas não lhe confere o poder de reiniciar todo o aparelho estatal, ao argumento de que o Chefe do Executivo precisa ter “confiança” sobre a atuação de todos os servidores públicos. O vencedor numa eleição não se assenhora completamente do Estado. Instituições e entidades públicas permanecem e sobrevivem às disputas político-eleitorais. Processos estatais decisórios em sociedades complexas cada vez mais precisam ser ditados pela técnica e pela ciência, e menos pelo sentimento ou vontade dos agentes políticos.
Decisões estatais guiadas por critérios científicos não caem do céu como dádivas divinas. Dependem de condições materiais e de uma rede de proteção jurídica; dependem da promoção de concursos públicos voltados à seleção de candidatos com formação muito específica num dado espectro do conhecimento humano; dependem de programas de aperfeiçoamento e atualização profissionais; dependem de processos de trabalho formalizados e informatizados; dependem de uma distribuição racional de competências; dependem, enfim, de institutos como a estabilidade no serviço público e o prazo certo para a investidura de cargos de direção.
Como vimos, a configuração contemporânea da burocracia estatal não é resultado do caso, mas de um longo, complexo e não linear processo de aprendizado institucional. Como todo aprendizado, porém, esse tampouco está imune ao esquecimento e, portanto, à possibilidade de retrocesso. Daí a importância de registrar a transcendência de eventos como o ocorrido com a Anvisa no último de final de semana, importante remédio contra a desmemória.
*Lademir Gomes da Rocha, presidente da Associação Nacional dos Advogados Públicos Federais (ANAFE)
*Pablo Bezerra Luciano, procurador do Banco Central e associado da ANAFE
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